Desde que o sector da cultura foi atingido pela pandemia, que a questão laboral dos que nele trabalham se tornou tema dominante, com grande destaque mediático. Seja pelas situações dramáticas que vamos tomando conhecimento, de muitos profissionais que foram empurrados para uma situação de desemprego e pobreza, seja pela falta de apoios sociais, seja pela inacção, inaptidão ou completo desconhecimento que o Ministério da Cultura tem revelado ao longo deste período na forma como foi lidando com os vários impactos da crise no sector.
No artigo que escreveu neste espaço em Julho, e centrado nas instituições do património cultural e nos seus profissionais, perguntava Luiz Oosterbeek se “todos os temas que temos a propor são os que herdámos do passado recente, acompanhados pelas mesmas angústias laborais que a todos afetam”, ignorando assim o debate sobre o impacto da COVID-19 na sociedade, e sobre as transformações comportamentais e culturais daí decorrentes.
As instituições culturais têm sem dúvida um papel incontornável nesse processo de reflexão, e na resposta aos reptos de mudança que assistimos e que afectam profundamente a forma como vivemos e nos relacionamos. Contudo, parece-me impossível fugir à questão laboral, que é precisamente um dos factores que mais limita a acção das instituições na área da cultura, e no sector do património cultural.
O que esta crise fez foi expor as misérias de todo um sector, assente no trabalho precário, baixos vencimentos, em lógicas de voluntariado, e mergulhado numa sub-orçamentação crónica que pouca margem dá a muitas instituições para além da manutenção de serviços mínimos. Foram muitos os inquéritos feitos neste período por associações profissionais e organismos ligados ao sector do património cultural que sustentam esta realidade.
Para que se tenha uma ideia, ficámos a saber que no sector da arqueologia, e partindo do inquérito realizado pela Sindicato dos Trabalhadores de Arqueologia (STARQ), 80% dos profissionais são trabalhadores precários, com 52,5% a trabalhar em regimes de recibos verdes. No sector da conservação e restauro, o cenário não é muito diferente. Partindo do inquérito realizado pela Associação Profissional de Conservadores-restauradores de Portugal retira-se que 50,7% dos profissionais encontram-se enquadrados no regime de recibos verdes ou com vínculos laborais precários (contratos de trabalho a termo, contratos de trabalho a termo incerto, contratos de trabalho temporário e bolseiros em projecto de investigação), e que no caso dos recibos verdes 73,9% dos profissionais apresentam rendimentos anuais inferiores a 12 500,00€ (com 21,7% a situar-se abaixo dos 7620,00€!), situando-se os números nos 66,7%, no caso dos trabalhadores por conta de outrem.
No inquérito produzido pela NEMO (Network of European Museum Organisations), e que reuniu aproximadamente 1000 respostas de museus de 48 países, 73% dos museus assumiram a necessidade de redução da despesa relacionada com os custos de pessoal e programas de voluntariado como consequência da pandemia. Cerca de 37,5% suspenderam entre o período de 24 de Março e 30 de Abril a colaboração com trabalhadores em regime de prestação de serviços, tendo este cenário sido particularmente dramático nos museus com cerca de 20 funcionários, e localizados em contexto não urbano, com 91% das instituições inseridas nesta categoria a reportarem redução de pessoal.
Se os museus e as instituições no sector do património cultural chegaram a esta crise já com graves problemas orçamentais e uma enorme carência de recursos humanos, o cenário agravou-se, e a capacidade de produzir conhecimento e respostas que vão de encontro às necessidades do momento, tornou-se mais limitada também. Estes sinais vão-se multiplicando, e talvez a situação que melhor ilustre esta realidade foi o despedimento colectivo protagonizado pelo MoMA de Nova Iorque (um dos museus mais ricos do mundo), de todos (!) os profissionais que integravam os serviços educativos do Museu, no passado mês de abril.
É por isso as questões laborais herdadas do passado continuam a ser incontornáveis, e continuarão a influenciar de uma forma determinante a capacidade de intervenção das instituições.
Sem museus, monumentos ou sítios, dotados de recursos humanos, qualificados, com vínculos laborais estáveis, e remunerações justas, não se pode esperar respostas à altura do momento, nem que as instituições “construam o lugar do que ainda não existe, mas pode ser desejado, pensado, detalhado e co-construído”, que Luiz Oosterbeek atribui como finalidade do património, no seu artigo.
Sem pessoas, sem a sua valorização, sem equipas de trabalho fixas e ajustadas às necessidades dos diferentes contextos, e sem meios, estaremos sempre na meia resposta (ou na não-resposta…), e dificilmente poderemos aspirar a mais que instituições anémicas, que tiveram de fazer da gestão das dificuldades e carências o seu grande desígnio.
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