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O relativo e o absoluto. Tempo no palco da “Foice”



Numa noite de final de abril, na conclusão de curta estadia na capital do Sado, depois de um jantar apressado, pese embora na boa-companhia de uma amiga de longa data, por coincidência, daquelas que são boas, fomos ao Fórum Luísa Todi. Assisti à estreia de “Foice”, peça produzida pelo Teatro Estúdio Fontenova. A ampla sala, muitíssimo bem composta, vivenciou uma experiência crítica, crua e intensa, transvertida de comédia negra, ou, no jocoso dizer dos seus autores, de um “Western do Litoral Alentejano”. 


Para quem não sabe, a Companhia conta com quatro décadas exatas de existência neste 2025 e resultou desse caldear criativo que Setúbal, antes e pós 25 de Abril, originou. Esse centro de criação, imaginou uma nova cultura portuguesa e tanto a influenciou nas décadas subsequentes. E o TEF é a única Companhia setubalense a subsistir, herdeira direta, desse movimento de contracultura que alimentou a inquietude, da cidade e do país, e que modelou o caráter do lugar. 


Quanto ao Fórum Luísa Todi, bem, ele assenta diretamente sobre os alicerces do antigo Teatro Rainha Dona Amélia, erigido nos finais de oitocentos. Há uns anos coube-me fazer o acompanhamento arqueológico do alargamento do palco, onde pude verificar ainda parte da estrutura do teatro e os restos de uma embarcação de madeira, encalhada na antiga praia, no que são terrenos conquistados ao leito do rio, mas que, em boa verdade, permitiu o espraiar físico da apresentação da “Foice”, como um Western e o Alentejo bem justificam. E quanto ao teatro propriamente dito, esse era já espetáculo popular no burgo, na centúria de setecentos, se bem que dele tenhamos ocasionais notícias do século anterior. 


Sem querer estragar o suspense de quem desejar e tiver a oportunidade de assistir a este belíssimo espetáculo, pode-se dizer que a peça incide essencialmente sobre os conflitos económicos, sociais e ambientais, que nos grandes empreendimentos decorrem. Esses investimentos, as mais das vezes feitos por exógenos, acarretam custos para os locais, a quem cumpre lidar com as faturas do desenvolvimento por outrem gerado e por si não desejado, procurando gerir, sem minimização alguma calculada, as transformações socioculturais que lhes foram impostas, sem resultarem da sua vontade expressa. 


Talvez que refletir acerca da natureza autofágica do capitalismo seja perspetivado, nesta nossa hodierna atualidade, como inutilidade, mas, acreditem, não seria uma obra de arte criativa genuinamente setubalense, se desprovida dessa marca caraterística, que é o de questioná-lo, olhos nos olhos. 


E, ao contrário de vos escrever acerca das conceções estéticas e artísticas desta específica produção (afinal, ao longo de uma década, fiz-me escriba de serviço nessa função, tanto para o que era representado em Setúbal, como, também, em Palmela), aqui despropositado, convido-vos antes, a passar vista por estas linhas, a propósito do conceito de tempo (e também de espaço), que nela foram apresentados, para, com estes, fazermos uma reflexão comum, juntando os atores daquele palco, este escriba que convosco o partilha, munido de uma bic cristal e um papel branco já um pouco riscanhado, e tu, que lês, equipado com o suporte informático e guarnecido do poder do digital. É triangulação difícil, mas não impossível. 


A arte do teatro é efémera. Razão pela qual é tal relativo o que dele sabemos. Todavia, é incontestável o seu poder. Perpassa séculos, essa arte de artifício, que distorce magistralmente a realidade através dos seus específicos rituais. Ilude-nos com os jogos de luz e escuridão, de presença e de ausência, de palavra e de silêncio, ação e sugestão, fisicalidade e quietude. É palete de recursos imensa, tão maior quanto a imaginação e a experiência de quem o cria. Inquieto e ansioso andava eu para poder, com propriedade, citar que: “Os artistas usam a mentira para revelar a verdade, enquanto os políticos usam a mentira para encobri-la.”. 


E, neste caso, nesta produção, justifica-se evocar essa frase paradigmática de um filme icónico da minha geração, o “V de Vingança”, que por sua vez assentou nas novelas gráficas de Alan Moore, desenhadas por David Lloyd, nos anos 80 e que, graças ao seu bom acolhimento, universalizaram as máscaras de Guy Fawkes, tornando-as num renovado símbolo na contemporaneidade – os Anónimos, ou Anonymous.  


Nesse sentido e neste contexto, espaço e tempo, também eles, obedecem às regras do teatro, que pese embora ficcionadas, têm de ser verosímeis, caso contrário não promoveriam a adesão do público, que se recusaria a prosseguir, a deixar-se ir, ou permitir-se embarcar na história que se lhe conta. E, porque não estamos já no Fórum Luísa Todi, peço-te leitor, o esforço voluntário de imaginar, como que num sonho diurno embrenhados, porque, enfim, sonhar não nos obriga a pagar bilhete. 


Temos três oprimidos (Afonso, Benedita e Nuno) e dois opressores (Sandra e Sónia). Os oprimidos, sentem-se como tal, porque são moradores de longa data de ali, mas não se percecionam como vítimas. Os opressores, pese embora o sejam, não se vêm dessa maneira, percecionam-se instrumentos e, se não fossem eles, outros seriam: 


Litoral alentejano, algures no tempo. Os últimos redutos de costa selvagem na região que não foram ocupados pelos grandes complexos industriais e agricultura intensiva são assolados por uma onda de investimento violento que visa criar um el dorado turístico e energético. O litoral alentejano e costa vicentina são assim colocados no mapa e começam a atrair milionários e empresários mundiais. Rapidamente, paisagens de dunas, montado e pinhal bravio dão lugar a grandes empreendimentos, casas rurais são demolidas, recursos naturais devorados, fura-se a terra em busca de água, terrenos são ocupados e crescem vedações que separam a população ao longo do território. Cansados de se verem expropriados das suas terras e verem o território explorado pelo grande capital, um movimento de pessoas forma uma comissão de luta de nome Frente Operária de Intervenção Comum de Emancipação – FOICE.” 


E pese embora seja tentador pensar, de imediato, acerca da conivência dos tão formais, quanto inúteis, acompanhamentos arqueológicos, que apenas servem a capa da legalidade, permitindo, subsequentemente, a legitimação desses processos, hoje não é acerca disso que aqui refletimos. 


O tempo dos oprimidos, talqualmente nos apresentam na “Foice”, é um que se carateriza pelo conforto identitário singularmente fornecido aos viventes. Pese embora se registem evoluções, não há cronologias e datações absolutas. Aliás, elas demonstram-se desnecessárias, uma vez que se registam apenas ciclos de progresso, mas o que difere são os instrumentos tecnológicos e o modelo económico. No entanto, esse registo histórico é apenas a camada da superfície – a realidade –, pois que – a verdade – é que tudo está associado à Mãe-terra, que é a origem de cada um e de cada qual. E que, naquele lugar, assume caráter particular, antropomorfizado, de parturiente e cuidadora, dos que passaram, dos viventes e dos futuros. Como mãe, conhece cada um dos seus filhos e com estes tem uma relação singular. Um pequeno monólogo de Benedita, espécie de súplica, talvez oração, magistralmente interpretado pela extraordinária atriz Sara Túbio da Costa, a dado passo, desvela-nos cabalmente o sentido desse tempo ficcionado em palco. 


Adiante, é então expressa a mitografia local, em sotaque alentejano intencionalmente hiperbolizado, onde se torna revelado aos profanos espectadores que o tempo é um só. O escondido, desvela-se e tudo ganha pleno sentido, pela narração da história fundacional e seminal: “Conta a lenda que, numa das suas muitas viagens pelo mundo, a deusa hindu Durga deparou-se um dia no sudoeste alentejano. Ouviu histórias fantásticas sobre o povo e sobre o local, narradas por mouras encantadas e sereias que habitavam o mundo místico da região. Cativada pelos relatos, decidiu passar um tempo junto dos mortais, assumindo a forma de uma ceifeira. A sua foice tinha um brilho nunca visto e grande era a agilidade e quantidade de ceifa que Durga conseguia fazer, trazendo à terra prosperidade e pão a todas as bocas. 


Os locais, inspirados por Durga, decidem começar a ceifar os campos abandonados. Mas a terra é propriedade de alguém, e os seus senhores, ameaçados por tal façanha, apressaram-se a condenar Durga por bruxaria e queimá-la na fogueira. Irada pela ignorância dos homens, a deusa amaldiçoou-os e escondeu a foice num lugar remoto. Apenas alguém de coração puro a poderia encontrar e livrar o coração da terra e dos homens dos demónios que os assombram. Conta-se que em certos dias, quando se ouve o canto da cotovia, é Durga a dar alento a quem procura justiça.”. 


Se fosse eu a contá-la, acho que trocaria Durga, porque anacrónica no contexto cultural específico, por Endovélico, o famoso deus alentejano da Idade do Ferro e do mundo romano. E claro, o cromeleque dos Almendres, enquanto estrutura de divinização agrícola, ou a gruta do Escoural para algo telúrico, para gerar um filho do seio da terra. Porém, a visão crítica e exegética é inaplicável a um exercício de imaginação que, porque exposto num palco, é consensualmente aceite por todos, criadores e espetadores, que é um artifício, um recurso. E esta pequeníssima lenda, verdadeiro hino ao sincretismo, serve os propósitos. 


E, numa nota mais lateral, é refrescante registar que aqueles que se dedicam à história local, consequentemente ao seu património cultural, se encontram colocados, pelos autores, no campo dos oprimidos. E se isto não dá que pensar, não sei o que dará. Afonso, que é o instruído, assume esse papel de forma clara. A certo momento, falando com um outro oprimido, diz-lhe: “Nuno, posso não ser daqui, mas sinto-me mais daqui do que ninguém. Venho para aqui desde miúdo. E porque é que achas que vim para cá viver? Tu leste o que eu editei, deixa-te disso. As florestas devastadas para a construção das caravelas. A vila que cresceu como destino de férias era um couto de homiziados, povoada por criminosos, e antes disso só cá paravam salteadores e piratas. Assim nem cá chegava o comboio quando começa a crescer a indústria e o turismo. Nos anos 80 isto era o Cais do Sodré da zona…”. 


Como Afonso não nasceu naquele lugar, apesar de a ele também pertencer, procura superar essa falha inultrapassável, porque amniótica, através do estudo. Só estuda aquele que não compreende, o que tem dúvida, mas esse estudo é sempre incompleto, frustrante, como quando desabafa com uma das opressoras (outrora uma oprimida, logo, parcialmente um deles): “Há muita coisa por fazer, Sandrinha. Problemas reais que a academia e as suas torres de marfim não comportam. Oxalá pudesse estar quieto. Mas o mundo está de pernas para o ar… não podemos viver fechados atrás dos papéis e dos intelectos. Temos de lutar pelas causas em primeira mão, no terreno, na rua.”. E este reparo é dado por não-académicos. 


O tempo dos opressores, nesta peça, conceptualmente não é distinto. O que difere é a perspetiva sobre o mesmo. Se nos oprimidos é benigna, nos opressores é o seu contrário. Nesse sentido, Sandra, a dado momento, desabafa: “As pessoas são resistentes à mudança. Têm medo do futuro. (…) Lembra-te que os parisienses acharam um ultraje quando avistaram a Torre Eiffel pela primeira vez. Hoje é o símbolo de uma nação. O progresso é tão assustador quanto necessário.”. 


O progresso, é assim, perspetivado como momento-chave, para a maioria de perigo e impureza. Uma ferida infligida ao contínuo do espaço-tempo, perigando a vida da Mãe-terra, consequentemente dos viventes e dos futuros, bem como, e não menos relevante, um insulto aos antepassados. Sónia é particularmente transparente nesse sentido: “Quanto tempo acham que vão resistir à mudança?”, para a seguir a reafirmar como inevitável. 


Essa ferida essencial, a que um lugar é exposto, tem formas de ser mitigada, auxiliando o processo de cura da Mãe-terra, através da institucionalização da indústria do património cultural. Sandra, antiga oprimida e atual opressora, diz-nos, a propósito do local onde oprimidos se congregam: “Usem-no como sede, criem um polo cultural. Um centro de formação, podem inspirar novas gerações! Um museu da luta, por exemplo! (…) Ou façam algo que dignifique o povo e a região. Seria ótimo para todos. A nós também não nos interessa vender uma região sem património cultural.”, voluntariando os opressores a custeá-lo, numa tentativa do consenso difícil, mas não impossível. É sempre custoso abrir o processo de aceitação, representatividade e reparação, esse caminho alternativo, onde se jogam simbolicamente perspetivas, desejos, medos, lutas. 


Porém, o fundamental é compreender que esta conceção de tempo, que resulta de uma heterodoxa mistura de materialismo dialético (Karl Marx), conjugada com esquerda identitária (wokismo) e com New Age (espiritualismo sincrético), se incoerente em teoria, é credível ao longo de todo o espetáculo e, portanto, de fácil adesão por parte do espetador, pelo que a narrativa apresentada penetra até ao âmago do ser e é, consequentemente, compreendida. E se tradição identitária mais não é do que a súmula da repetição cristalizada no tempo, nada obsta, portanto, a ser reconhecida a verosimilhança da mitografia criada neste espetáculo do TEF, como eficaz e eficiente comunicação. 


Ora, nós, operários do património, integrados tantas vezes nas instituições da memória, quando contamos as nossas narrativas, fazemo-lo também a partir da nossa consensualizada conceção de tempo, que é de origem técnico-científica, laica, cronologia e datação, contagem de tempo unilinear, com a precisão matemática de instrumento de contagem – o relógio. Porém, na forma como transmitimos ao público profano essas histórias da História, poderemos orgulhar-nos de obtermos tamanha eficiência? 


É que a ação de comunicação, depende do emissor, mas, de igual forma, depende do recetor. E, nesse sentido, nada na nossa formação nos prepara e sensibiliza para termos de ser também hábeis contadores de narrativas. Talvez esteja na altura de retirar Hayden White da poeirenta prateleira, reler as suas propostas com um novo olhar. Será assim tão irrelevante, para os profissionais operários do património, investirem em ser entendidos por quem os escuta, por quem os lê? 


Estas questões assaltaram-me, provocadas pela “Foice”, de João Mota, Patrícia Paixão e Vanessa Iglésias Amorim, quando a ela assisti e nas semanas subsequentes, até convosco as partilhar. O TEF, companhia apoiada pela Direção Geral das Artes e pelo município de Setúbal, está de parabéns. E quem não viu, e gostasse de ver, pode sempre procurar adquirir a edição impressa da peça, onde se narra o longo processo de investigação dos autores. 

 _______ O autor utiliza o novo acordo ortográfico.


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