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This is your captain speaking


O ponto geográfico mais próximo de que estive da China dista três mil e quinhentas milhas do chão que pisaram Batuta, Polo e Byron. Um outro alguém que palmilhou os seus caminhos deu-me a ler um relato em tudo diferente dos daqueles viajantes: jornalístico, factual e político. Esqueci-me de tudo (só retive Ibne, Marco e Robert pela dimensão encantatória que imprimem ao relato de viagem como justamente se exige que seja: real e ficcionado em partes iguais, como tão bem o herdou e entendeu Chatwin). É mentira. Nunca mais me esqueci do prefácio, escrito pelo diplomata que desempenhava as funções de embaixador português em Beijing em 4 de Junho de 1989: o último dia das manifestações em Tian'anmen.


Imbuído da álgida clarividência de análise política que só aos diplomatas parece calhar em sorte, o embaixador esclarecia com uma objectividade excruciante: o governo Chinês queria para a China o mesmo que os manifestantes exigiam. Todavia, não para aquela Primavera mas para dali a 30 anos. Por isso esmagou o formigueiro. O factor disruptivo de um anacronismo desconfortável, ainda que simpático, é sempre uma maçada para quem não vê o indivíduo como uma experiência irrepetível.


Story board: a mote da China um afirmativo paradoxo chinês e uma blague interrogativa dos corredores da ONU e dos Negócios Estrangeiros: «A próxima frase é falsa. A frase anterior é verdadeira» e «A lagosta nada ou saltita?». Isto porque, paradoxos à parte, o Mar é de todos mas o seu subsolo não: tem um dono, integra um território soberano, pertence a esse Estado. Como a lagosta: caso saltite pelo leito atlântico em vez de nadar.


Arc: embora seja óbvio que a Extensão da Plataforma Continental (emepc) concerne a dados de natureza geomorfológica do fundo marítimo e seus solo/subsolo e respectivos recursos orgânicos e minerais, é sobremaneira inequívoco que esse direito reivindicado pelo Estado Português junto da ONU radica também numa dimensão histórica de expansão atlântica que nos permite, por exemplo, abarcar nessa pretensão as plataformas das regiões autónomas dos Açores e da Madeira, descobertas nas embarcações e a partir das estruturas portuárias exumadas nos últimos anos, particularmente na frente ribeirinha de Lisboa. Sendo esta uma missão nacional transversal que interessa a todos os cidadãos portugueses e seus representantes nos órgãos de soberania política, não se pode obliterar esse aspecto fundamental da memória colectiva face à magnitude e repercussões para o futuro de um desígnio que nos desafia a usar dos melhores meios técnicos de levantamento subaquático, divulgação pública, como as sessões da emepc promovidas no CINAV (Escola de Marinha) e nos Jerónimos (Museu Nacional de Arqueologia); note-se: em sede colóquios de arqueologia náutica - e notáveis esforços diplomáticos junto da ONU.


Objectivo? Soberania sobre o subsolo dessa extensão submarina para daqui a cerca de trinta anos concessionar à China a exploração das jazidas minerais que, no estado actual dos nossos conhecimentos, serão as fontes de energia dos meados do século XXI. Uma balsa de junco para os nossos filhos e netos agora que, enquanto europeus, entrámos contrafeitos na adultícia e se acabarão as mesadas de uma moratória adolescência.


Com tais desígnios de política nacional/internacional, com tal correlacionado património histórico/ arqueológico prestes a saltar do leito do Tejo, afigura-se inequívoca e urgente a necessidade de repensar e redimensionar à escala real do nosso Património Náutico os meios humanos especializados, instalações e equipamentos a atribuir ao Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática da Direcção Geral do Património Cultural, actualmente em negociação entre o Ministério da Cultura e a Sociedade Civil.


Todavia, se o Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática não for urgentemente dotado de expressão orgânica adequada no aparelho da estrutura do Estado Português, formalizada em Diário da República, será este mais um sinal de que nunca teremos uma Ideia identitária para o País que ancore e dote de substância e coesão as suas políticas internacionais. É esta uma especificidade aparentemente exclusiva de Portugal e comprometedora dos desígnios bem-intencionados da democrática Constituição desta Terceira República: a tristeza do primado do imediato sobre o longo tempo, da sujeição da política à burocracia, da disruptiva estupidez cipolliana à constância de uma inteligência humanista plural e agregadora.


Os investimentos públicos (Metropolitano) e privados (Reabilitação Imobiliária no âmbito dos diversos Planos de Pormenor implícitos na duas vezes ratificada Carta Estratégica de Lisboa) anunciados para a Zona Ribeirinha de Lisboa, pela experiência de terreno, laboratório e investigação actuais, fazem prever a detecção de cerca de uma centena de navios e dezenas de estruturas portuárias e estaleiros datáveis dos séculos XV a XIX. Só na tempestade de Novembro de 1724 se afundaram em Santos 67 embarcações. Como já foi escrito noutro lugar, talvez os dois navios exumados nas obras da actual Sede da EDP (as embarcações Boavista 1 e 2) entronquem essa frota. A EDP à época financiou o que era de Lei e extravasou as suas obrigações, custeando transportes, contentorização, conservação preventiva e investigação.


Eternal return: «Se no final de uma escavação arqueológica não se contar uma história, então a arqueologia não serve para nada», afirmei uma ocasião a um jornalista. No que conta para contar a história a EDP não gastou um tostão, não se interessou, não quis. Aliás, na extensa área para a qual o PDM à data em vigor impunha trabalhos arqueológicos para o espaço entre a Av. 24 de Julho e a Rua Dom Luís I, o rectângulo destinado à construção da Sede da EDP era uma inusitada zona livre. Certamente um técnico lapso de cartografia. Por certo só isso: um deslize da mão que segurava o cálamo. No tempo em que iam decorrendo as negociações nos corredores da ONU foi a EDP vendida à China.


«A próxima frase é falsa. A frase anterior é verdadeira». Um paradoxo sem solução.


Mas a lagosta: nada ou saltita?


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