As “coisas do património”, sob a minha perspetiva, têm a ver com pessoas. Quer individualmente, quer organizadas em coletivo, entendo que há a necessidade de colocar as pessoas no centro das estratégias para a valorização do património.
O sistema de proteção e conservação do património cultural assenta, tradicionalmente, num conjunto de peritos que aplicam metodologia de trabalho aferidas e validadas pelos seus pares em vários níveis e estruturas de decisão, desde as instâncias locais, regionais e nacionais até às internacionais, definindo um conjunto de pessoas que John Schofield (2015) designou por «thinkers». Esta comunidade toma decisões sobre as “coisas do património”: o que ser preservado ou o que ser salvaguardado, promovendo e perpetuando um discurso patrimonial oficial (do inglês Authorized Heritage Discourse, postulado por Laurajane Smith), que se materializa em legislação e estratégias de ação. Este modus operandi permitiu a criação de um sistema de protecção do património cultural que, por sua vez, possibilitou uma garantia da existência e continuidade dos bens culturais, e a definição de muito necessárias agendas para o património cultural, numa perspectiva de usufruto alargado por parte de todos os cidadãos.
Os caminhos que hoje o património trilha, permitem também um papel aos afectos e às emoções na construção e preservação do património. Destacam-se hoje, as relações entre memória e história, vínculo e identidade e as ligações que se estabelecem, quase umbilicais, entre os indivíduos e os seus locais patrimoniais, num contínuo descobrimento do sentido do lugar (Schofield e Szymanski, 2001). No centro da argumentação está o facto de que muitos bens patrimoniais têm uma dimensão do quotidiano, utilizados e usufruídos por indivíduos e comunidades. David Crouch (2015) afirma que estes vínculos que as pessoas estabelecem com o património, permitem que este se torne significante também pelos afectos e emoções.
Podem as ligações afectivas e sentimentais desempenhar um papel relevante na salvaguarda e valorização do património cultural? Com que dimensão e escala? Em que medida esta dimensão de afectos e sentimentos e património pode ser enquadrada nos processos de gestão e valorização actuais do património cultural? Estas questões não têm uma resposta fácil, sobretudo porque temos ausência de estudos que se debrucem sobre estes temas. Mais do que estudos, ainda permanece uma desconfiança sobre o papel das comunidades patrimoniais (Convenção de Faro, 2005). Mas são fascinantes e fazem sentido quando acreditamos que as ligações pessoais e afetivas perpetuam os vínculos das pessoas com os espaços patrimoniais. Que melhor maneira para construir, salvaguardar e valorizar o património?
Para além de um enquadramento conceptual para esta matéria, da qual a Convenção de Faro de 2005, é um importante instrumento, uma vez que reconhece a “necessidade de colocar a pessoa e os valores humanos no centro de um conceito alargado e interdisciplinar de património cultural” e que “cada pessoa … tem o direito de se envolver com o património cultural da sua escolha” para além da “necessidade de comprometer cada um no processo contínuo de definição e gestão do património cultural”, existem exemplos de uma aplicação destes princípios. Por exemplo, em 2008 a English Heritage definia nos seus Princípios de Conservação que todos poderiam contribuir com o seu conhecimento sobre o sentido dos lugares e participar nas decisões sobre os mesmos, colocando em prática a noção de que o património é para todos e que todos têm o direito de activamente participar nele (Schofield, 2015:418).
Uma das categorias do património onde este princípio parece mais bem conseguido é no património cultural imaterial. A grande aceitação desta categoria patrimonial, coloca em pé de igualdade os locais do quotidiano das pessoas e os grandes locais de relevância histórica.
Portanto, defende-se que as pessoas interessam para o património. E não apenas numa lógica de visitantes, consumidores, clientes, mas numa lógica de valorizadores do património, de produtores de conhecimento e de elementos relevantes para a gestão do mesmo, na sua dimensão pessoal, emotiva, afetuosa, de «feelers» (Schofield, 2015: 417).
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