“Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?”
E o homem do leme tremeu, e disse:
"El-Rei D. João Segundo!"
Fernando Pessoa, Mensagem
O poema de Pessoa consolidou em Portugal, depois da epopeia camoniana, um autorretrato de determinação em ultrapassar o medo, através da vontade e do sentido de missão. É, como tantos outros, um interessante mito-fundador, que certamente ajuda à não inscrição de alguns traumas, como referia José Gil, mas que também contribui para um misto de adaptabilidade e conservadorismo que se prolonga, por exemplo, nas artes da diplomacia. Sim, este autorretrato espelha-se bem na intrépida e estulta correria para as praias, sem medo do COVID-19, mas também na magnífica mobilização em torno da defesa de Timor-Leste, há uns anos atrás. Um autorretrato simplificador e mitificador, claro, mas que foi captado pela caricatura de Hergé do corajoso, ligeiro e não menos diplomático pequeno comerciante, Oliveira da Figueira, e se reencontra em diversos heterónimos de distintas, mas convergentes vozes, da pequenez deslumbrada condensada por Eça em Dâmaso Salcede, à teimosia dos próprios passos em Régio.
A força dos mitos está, como com os pudins, na sua experimentação. Eles renovam-se a cada dia, herdando posturas argumentativas dominantes, que podem ser mais permanentemente seguras de si (perceção que, nos outros, soa a arrogância), eivadas de rigorosos princípios morais (que outros entendem como fundamentalismo), cativadas pela espuma de sorrisos que disfarçam dores (que outros veem como irresponsabilidade) ou caldeadas por uma pulsão para as “grandes” (raras) causas que deixa sem governo o quotidiano (o que outros percecionam como incompetência). Essa renovação, ainda que dinâmica e transformativa, configura distintas dinâmicas culturais, e implica, por isso, diferentes abordagens nos processos comunicacionais. O património cultural, a forma como o reconhecemos, gerimos e preservamos (ou não), é uma expressão dessa diversidade comportamental/cultural.
Quando, no campo da cultura e do património, tantos tanto falam de diversidade, não deixa de ser interessante que se busquem modelos no essencial idênticos para a sua gestão, independentemente dessa mesma diversidade. Não estará aí uma negação da própria essência do campo das Humanidades, que sublinha a unidade da espécie mas valoriza a sua declinação através de processos sempre distintos?
O Património Cultural é estruturado como objeto e relíquia nos nossos espaços, como uma acentuação que pode ser deslocalizada (veja-se a polémica recente sobre a placa de Ventura Terra num edifício da Universidade de Lisboa) e não como uma conceção do espaço público, como em Itália por exemplo, ou como uma unidade de conhecimento que pode ser desmaterializada sem prejuízo (desde que o conhecimento seja preservado e socializado), como em partes da Ásia. Note-se que umas abordagens não têm por que ser melhores do que as outras: são simplesmente distintas, configuram paisagens culturais distintas e desencadeiam comportamentos culturais distintos.
Essas distinções prolongam-se para além do olhar e vivência do património, e são reencontráveis noutros campos, como na perceção da dialética entre indivíduos e grupos, ou entre interesses de curto e longo prazo, por exemplo, o que ajuda a explicar certos comportamentos face à atual pandemia de COVID-19, por exemplo. Deve a estratégia de combate à pandemia apoiar-se no medo do desconhecido (que pode desencadear gestas “heroicas” de “resistência”) ou no sentido de missão? Pode uma estratégia comunicacional desenhada para Portugal ser igualmente eficiente no norte da Europa, ou nas Américas?
Nestes dias em que os meios de comunicação, por uma vez, quase silenciaram o futebol para se organizarem em torno de outro monotema, perante o calendário do compromisso em escrever nesta coluna fui pensando sobre como uma gestão diferente do património, apostada não nos números de visitantes mas nas reflexões que ele possa suscitar sobre quem e o que somos, poderia ajudar a nossa sociedade e os seus dirigentes a enfrentar, de forma mais eficiente, os dilemas que se colocam na vida em sociedade. Por exemplo, estudando e discutindo a relação das sociedades com o medo, através da forma como patrimonializam (ou não) vestígios do passado, como valorizam (ou não) as dimensões dramáticas dos processos que produziram certas materialidades (como as castelos e fortalezas) ou como registam (ou não) as dinâmicas segregadoras que produziram boa parte do património intangível.
Como poderemos articular, de forma efetiva e útil, os campos do Património Cultural e da Saúde?
É que se o Património Cultural não servir para ajudar a sociedade nos seus momentos de aflição, serve para quê?
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