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Guns of Brixton



Estou a escrever sem rede. Tenho por categórico imperativo que «se não agradece nem pedem desculpas ao serviço de Sua Majestade» - blague de conduta dos corredores do Foreign Office que devíamos ter mais amiúde por inspiração. Quando há dias vi o nosso PM encaminhar para o cesto da gávea da europeia escuna o burgomestre holandês, nasceu-me por instantes uma alma nova. Posto isto, não pedirei desculpa por alguma eventual imprecisão histórica das linhas que se seguem. Estou a garatujar o caderno de cor e não se limpam armas em tempos de guerra.


Em tempos de guerra foram exemplos de cidadania, coragem e de heroísmo James Agate, crítico de arte (1897-1947) e Isahia Berlin, académico em filosofia política (1909-1997). Em tudo diferentes um do outro. Iguais porque não há notícia de herói algum do lado bom das baionetas. Heroes.


Berlin, armado Cavaleiro no ano subsequente ao do final da Segunda Grande Guerra Mundial; Agate doente e morto na Primavera seguinte (as mazelas de Capitão da Primeira Grande Guerra e as adversidades da Segunda não o pouparam). Para ambos Noblesse Oblige (um título de Agate).


No volume da sua autobiografia, A shorter Ego (não se iludam: Ego era o nome do seu cavalo), James transcreve as suas crónicas, de ir às lágrimas (de riso) de um gossip virulento da igualha do Blitz. Ocasiões há em que a crítica no The Sunday Times só cobre uma parte da peça teatral porque o bombardeamento desse serão resultou na debandada para os abrigos. Um tal sangue frio debaixo de fogo, associado à acidez do seu sentido de humor dispensa elogios. Heroes.


Isahia, o mais nobre dos defensores do liberalismo (todavia profundamente desconfiado das pretensas sociais virtudes da economia de mercado). Quem melhor descreve a exemplaridade do seu carácter é Vargas Llosa, que o conheceu. Berlin nunca quis publicar volumes de filosofia política – uma sobriedade tão rara que justifica o carácter tardio do seu reconhecimento internacional –mas marcou para sempre o respeito pelo indivíduo enquanto experiência única e irrepetível. A elegância das suas conferências e raros artigos; recordem-se apenas três (The Hedgehog and the Fox; Karl Marx: His Life and Environment e Four Essays on Liberty) mudaram para sempre a história das ideias e a filosofia política. Escolheu abordar os seus opositores ideológicos (Marx e Tolstói) para expor o tão peculiar liberalismo berliniano. E com muita atenção se note: tratando-os com um respeito e admiração intelectual que nem os próprios autores dos seus panegíricos alcançaram. E revolucionou tudo com os conceitos de liberdade positiva e liberdade negativa. A primeira, levada ao extremo (por imposição) pode por em causa o princípio de igualdade, e a igualdade, se imposta pelas baionetas, pode envenenar-se no seu próprio vómito. Simplificando, a sua ideia de pluralismo com fito no bem comum e na democracia só se pode materializar num enquadramento de pacífica reciprocidade no respeito por ideias diferentes e permanente negociação social, económica, política e cultural. Such a humble gentleman deve a sua fama ao labor de alunos que publicaram em volumes as suas sebentas, espalhados artigos e apontamentos soltos.


«Reciprocidade no respeito por ideias diferentes e permanente negociação social, económica, política e cultural». Pouso o caderno de bolso e arranco para o topo de uma colina para ver o sol pôr-se além do Bugio. Na estação de rádio passam dos The Clash um rude tema da minha adolescência, que as Nouvelle Vague maquilharam de uma saudável ironia, «When they kick at your front door, How you gonna come? With your hands on your head, Or on the trigger of your gun?».


Eu não sei nem ninguém sabe. Antes de ligar a ignição fito de soslaio as paredes palacianas que em 1795 vieram substituir os barrotes da Barraca Real, por terminar há nove gerações. Será que na décima algum Berlin ou Agate as habitará? É que nesta nona só se sabe de salas vazias, escorregadias escadas e assombrações.


Já que se não agradece nem se pedem desculpas, so help us God, when they kick at your front door.


 

Post scriptum to Isaiah Berlin


«Tudo está cheio de prodígios» dizia algures, e um pouco vagamente, Jean Bodin em suas derivas entre a ciência do direito e a exegese do Livro, num tentame de espalhar uma justiça humanista e proba entre os seus contemporâneos da centúria de todas as revoluções cosmogónicas: a de quinhentos.

Confesso um pouco vagamente subscrever que tudo está deveras cheio de prodígios. Narro-vos um episódio a mote do artigo que encabeça estas linhas: o meu muito amigo António Carvalho (Director do Museu Nacional de Arqueologia) escreveu-me oferecendo-me, na sua matricial generosidade, a informação de que «esta personalidade mundial [Isaiah Berlin] passou por Portugal [grafando a] sua própria letra num impresso português. Claro, ficou alojado no “Palace Hotel” no Estoril. Onde ficavam os Aliados». O meu amigo encaminhou-me para Inês Fialho-Brandão (Coordenadora, Espaço Memória dos Exílios/ Divisão de Museus e Promoção Cultural/ Câmara Municipal de Cascais) que me asseverou: «Com efeito, Isaiah Berlin esteve alojado no Hotel Palácio de 19 a 24 de outubro de 1940». E forneceu-me o documento. Mas mais: note-se a nobre galhardia com que corrige o meu erro de onomástica (não é gralha é mesmo um erro meu) do meu querido Berlin.

Se isso me servir a alguma forma de autoindulgência, é certo que os protagonistas do meu terceiro livro de ficção (Smalloch, Companhia das Ilhas, 2018) se chamam Abraham, Ezra e Isahia. Pouco me vale, mas alegra-me: por isso não alterarei o onomástico lapso desta crónica, para regozijo da fina ironia de Isaiah, e para exultar o facto de com almas como a de António e Inês esta pardacenta ecúmena se me tornar um lugar mais benfazejo e possível. E eis a caligrafia de Berlin.


Obrigado, António e Inês. God bless you.


Boletim de alojamento de Isaiah Berlin no Hotel Palácio. Arquivo Histórico Municipal de Cascais. (PT/CMCSC-AHMCSC/AADL/CMC/I/009-001-005 DS 005/018/0086)



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