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Entre o confinamento e a perspectiva de regresso: um admirável mundo novo?


Márcia Sousa


O convite da Acesso Cultura para reflectir sobre a actual situação e as estratégias adoptadas pelas instituições museológicas, incluindo a que represento, para mitigar os efeitos da pandemia, surge quando nos preparamos para retomar a actividade laboral presencial, depois de quase dois meses de confinamento, de instituições encerradas e de programação interrompida. Ora, num mundo ainda em suspenso, não posso deixar de observar, com uma certa nostalgia e, até temor, que não regressaremos da mesma forma, nem agiremos da mesma maneira perante o outro.


O tecido social e a economia, tal como a conhecemos hoje, mudaram. Porém, esta mudança não começou com o aparecimento dos primeiros casos conhecidos de Covid-19, como muito se tem feito parecer, numa tentativa de branquear as transformações estruturais que sobre os museus e outras instituições culturais têm recaído nas últimas três décadas. O confinamento e o distanciamento social contribuíram, apenas, para o acelerar de um processo que há muito estava a ser preparado de forma transversal, fazendo do digital e da presença assídua nas redes sociais uma ferramenta premente e imediata para a divulgação dos programas que as instituições culturais vão dinamizando no âmbito da sua acção quotidiana. Um meio privilegiado para a sensibilização e contacto directo com o público.


Os detratores desta perspectiva dirão que se trata de um recurso a mecanismos de fast food ou de uma prestação de serviços de self service da cultura, que desvirtua os seus princípios orientadores. Creio, contudo, que a utilização destas ferramentas, há muito disponíveis e em uso pela maior parte das instituições culturais mundiais, desde que se reserve alguma parcimónia e o mesmo cuidado/critério que se coloca na preparação dos conteúdos para fruição presencial no Museu, naqueles que são disponibilizados online, poderá ter um papel importante na divulgação das exposições, dos projectos de investigação, das actividades de acção pedagógica e demais eventos que a instituição cultural possa ter em carteira.


Na actualidade, é urgente sensibilizar, educar, manter, fidelizar e cativar novos públicos. Esta existência virtual, embora remota, quando sustentada e criteriosa, em nada prostitui a instituição museológica, podendo operar como uma porta de entrada ou antecâmara do museu físico e até comportar um elevado grau de interactividade, estimulando a curiosidade, não dispensando uma visita presencial ao Museu, aos seus acervos, colecções ou exposições. O que estas ferramentas aportam de valor reside na acção pedagógica e de divulgação que fomentam. Uma visita virtual, disponibilizada através do recurso a um vídeo publicado num canal youtube ou através de tecnologias de realidade virtual (RV) ou aumentada (RA); um posdcat; um boletim informativo ou uma newsletter; uma conferência através de uma aplicação de videochamada; uma visita comentada em live streaming, ou, uma simples publicação na página Facebook ou Instagram de um Museu, não substituem a visita física. Nem o podem ou devem ambicionar fazê-lo. Devem sim, potenciar mecanismos provocatórios, de descoberta autónoma, curiosa e orientada para a procura pelo conhecimento que se consubstanciem, posteriormente, na riqueza da fruição presencial do objecto em espaço museológico. No entanto, a democratização da acessibilidade à cultura e ao conhecimento das colecções, não podem ser os únicos objectivos destas iniciativas, agora mais intensificadas pela contingência da crise sanitária que experimentamos. As ferramentas digitais existem e estão ao dispor das instituições, devendo ser usadas em extensão da acção localizada na comunidade. A título de reflexão, para um futuro não muito longínquo, importa pensar os públicos para quem produzimos conteúdos e criar instrumentos de medição do alcance, da utilização e aceitação dos materiais que disponibilizamos online. Esta análise permitirá regular e accionar mecanismos de selecção, podendo, eventualmente, dar origem a novas dinâmicas museológicas, sem descurar as existentes, não se vislumbrando a sua extinção.


Num mundo globalizado e veloz, onde o imediatismo prolifera, no virtual se antevê o futuro imediato da economia. A compreensão do alcance da pegada digital dos museus e demais espaços de acção cultural poderá ser vital à sua sobrevivência e sustentabilidade futuras. O tratamento, investigação e preservação do património e da memória colectiva das comunidades não se pode fazer apenas a partir da conservação do objecto físico, sendo, pois, essencial repensar as estruturas ainda em uso.


Estaremos, portanto, perante um “admirável mundo novo”? Não! No regresso, continuaremos caminho, acompanhando compassadamente a evolução tecnológica e as demandas do mercado provocadas pelas oscilações da sociedade. Os museus que não se adaptem a este requisito sentirão decréscimos nos seus públicos e, eventualmente, num futuro não muito distante, serão confrontados com a necessidade de reequacionar o seu posicionamento e valia no seio das comunidades onde se inserem, sem prejuízo do património que tenham à sua guarda.


É de um lugar de resiliência crítica e de silêncio resignificado que me aproprio da peça musical 4’33 (1952), de John Cage, para apelar à arte da escuta e observação activa, em silêncio, como exercício essencial para uma reflexão sobre o papel da museologia e dos espaços de musealização, das suas estruturas patrimoniais e teóricas, nos seus respectivos enquadramentos, com vista a uma adaptação sustentável que permita fazer face aos contextos que se avizinham. Um exercício que se quer tranquilo, mas que revolucione as bases sobre as quais assenta a museologia tradicional, sem a desvirtuar e orientado para o futuro.


 

Márcia Sousa é Licenciada em Artes Plásticas, mestre em Ensino das Artes Visuais, 3.º Ciclo e Secundário e doutoranda em Museologia. Dirige desde 2017 o Mudas - Museu de Arte Contemporânea da Madeira, instituição que coordenava desde Novembro de 2016.


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