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Arquivos Culturais #2: Artes vivas num lugar sem forma


A pandemia causada pela Covid-19 trouxe um desafio vertiginoso ao campo das práticas artísticas, nomeadamente ao das artes vivas, ou melhor, das artes cuja forma habitual é a do espectáculo ao vivo, na presença de um público.


Na sequência do fecho dos teatros e outros recintos de espectáculo, devido ao cancelamento de todas as manifestações artísticas presenciais, muitas companhias e artistas individuais tomaram a iniciativa de apresentar as suas criações nas redes sociais e em plataformas como o vimeo ou o youtube, para só falar nalgumas das mais conhecidas expressões desse lugar sem forma que é a internet. Aí aconteceram concertos em directo ao sabor da inspiração e da vontade, com ou sem hora marcada, gravações partilhadas, estreias online, disponibilização de registos vídeo de espectáculos por períodos limitados de tempo ou em acesso livre, tanto de forma gratuita como mediante pagamento.


Sobretudo durante o primeiro confinamento, gerou-se um movimento amplo de revisitação de fundos de arquivo de companhias e artistas, trazendo a público, além de criações pensadas para as novas circunstâncias, memórias prodigiosas e esquecidas, relíquias documentais a par de registos sem interesse, ou cujo interesse resulta apenas da oportunidade de os mostrar, participando neste momento de euforia digitalizadora. Desigual nos conteúdos, nas formas, na relevância e até na oportunidade, o que assim aconteceu merece atenção em vários planos, desde logo por interrogar a valorização desses arquivos. Se alguns destes registos tiveram edições de circulação limitada ou exibições pontuais perdidas no tempo, muitos outros tiveram uma existência até aqui mantida à margem da circulação de imagens ao permanecerem no silêncio dos armários ou na rigidez dos discos de armazenamento. Encontrarem agora uso é também encontrarem um sentido que eventualmente os renova face ao que foram anteriormente. Sabidamente, vários destes documentos não foram vistos antes, tendo muitas companhias a prática de registar espectáculos e até processos de trabalho, sem que essa documentação se torne pública, pelas mais variadas razões. Nalguns casos, são produções com meios reduzidos, formalmente pouco elaboradas, como acontece quando se faz a captação e registo de um evento com uma câmara única em posição frontal, fixando um pouco provável ‘olhar universal’ sobre um espectáculo. Que agora tenham chegado aos feeds das redes sociais com a aparência de recursos apressados, ou como resposta à vertigem de digitalização que varreu o planeta (podia até dizer viralizou o planeta, literalmente), dá-nos uma imensa oportunidade para observar e compreender as estratégias de documentação, registo e difusão em uso desde que há meios técnicos para as concretizar, e interrogar a sua ausência prolongada da condição de acesso público.


Uma tentativa de caracterização sumária da diversidade destes registos deveria incluir, entre outros:

  • registos cujo suporte deixou de funcionar (betacam e suportes de registo mais antigos) e que dificilmente serão recuperados;

  • registos adormecidos nos quilómetros de fitas magnéticas por digitalizar, armazenados de forma mais ou menos cuidada e que exigiriam um esforço insano para passar ao digital;

  • registos partilhados em formato digital para fins apenas de consulta, num círculo restrito destinados a programadores ou à imprensa, por exemplo;

  • registos teledifundidos pontualmente, muitos perdidos em arquivos mal conservados ou tecnicamente inacessíveis;

  • micro-registos realizados pelo público durante o espectáculo, captando um ponto de vista parcial e frequentemente compartilhados nas redes sociais (em directo ou em diferido);

  • registos comercializados em vhs, dvd ou mais recentemente em streaming.


Anterior à circunstância pandémica, a tendência dominante é a de deixar documentos de trabalho ou de registo fora de circulação, relegados para o limbo do esquecimento. Há mais do que um motivo para que estes arquivos culturais tenham repousado aí tanto tempo. Desde logo, uma certa resistência, por parte dos artistas, na cedência dos direitos das suas produções sem a compensação devida. Por exemplo, em Inglaterra esses direitos são escrupulosamente defendidos pelos sindicatos, que zelam para que a difusão de registos videográficos realizados com fins documentais sejam objecto de pagamento de direitos aos artistas. É também frequente que as condições técnicas que presidiram aos registos (limitações de equipamento, condições dos espaços), afectando a qualidade dos resultados, determine a sua exclusão do circuito público ou de difusão. E mesmo um propósito documental interno, como por exemplo o de registar o processo de trabalho, leva os artistas a considerar que esses objectos não se destinam à difusão, devendo antes permanecer no limbo silencioso e perecível dos arquivos.


Mas encontramos uma ainda maior resistência a deixar que o espectáculo vivo se registe e se transforme em material reprodutível autonomamente, fora das condições de produção que o originaram, isto é, ao vivo! A compreensão das artes de palco como artes ao vivo, em oposição a formas de espectáculo mediatizado que permitem a reprodução mecânica, viabilizam a temporalidade diferida e sobretudo potenciam a autonomização do registo em suportes stand-alone (dvd ou ficheiro digital autónomo), tem sido debatida desde que vivemos na era da reprodutibilidade técnica. Os argumentos dominantes contra a mediatização sublinham que as condições de recepção da documentação não reproduzem a experiência 'ao vivo'; que são evidentes as limitações do ponto de vista da(s) câmara(s); e que a própria montagem pode distorcer a intenção artística da criação levada à cena, ou penalizar o trabalho dos actores, tão distinto no palco quando comparado ao que um ecrã pode mostrar.


Podem, porém, contrapor-se a isto os inúmeros casos de espectáculos históricos de teatro e dança que hoje não poderíamos conhecer nem continuar a dar a conhecer de outra maneira — penso em espectáculos de Jerzy Grotowski ou Tadeusz Kantor, de Pina Bausch ou de Ariadne Mnouchkine, para só dar alguns exemplos. Se não dispuséssemos de um registo audiovisual (mesmo impreciso, ou tecnicamente pouco cuidado, ou ainda com um ponto de vista que não corresponde ao de nenhum espectador possível), seríamos infinitamente mais pobres quanto ao conhecimento do trabalho destes criadores. E, em rigor, permanecemos pobres quando o manancial diversificado de documentos a que me refiro não é objecto de uma política de arquivo nacional nem colhe, na sua publicação intempestiva, uma leitura que interrogue a sua oportunidade e significação para além das suas condicionantes técnicas ou das resistências que limitam a sua circulação.


Com a pandemia e a vertigem digital originada, estes arquivos circulam cada vez mais pelas redes, como que mostrando que aguardavam por esta oportunidade. Não que as reservas ou os argumentos tenham desaparecido, mas o campo argumentativo tornou-se, por assim dizer, mais frágil perante a abundância de registos em circulação, mostrando teatro, dança, música, etc. em formatos antes vistos como limitadores da experiência da recepção.


De resto, os muitos projectos de criação que assumiram as potencialidades do suporte digital sem complexos, explorando criativamente as ferramentas desta idade zoom, além de incorporarem na sua linguagem as virtualidades do suporte, vieram potencialmente engrossar o caudal dos arquivos disponibilizados online. Os anos que vêm, seja como for, trarão consigo a exigência de avaliar o impacto das transformações em curso nas práticas artísticas, perspectivar as marcas que deixam e as possibilidades que abrem às linguagens da criação. Como sabemos todos, não se cria da mesma maneira quando não se vive da mesma maneira. E por certo também não se arquiva da mesma maneira. O crescente número de registos vídeo disponibilizados ao longo do último ano, na criação artística como nas mais variadas áreas de actividade humana, é disso prova irrefutável.


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