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Acessibilidade e políticas de gestão de colecções


Alexandre Matos


Nunca me passaria pela cabeça quando recebi o convite da Acesso Cultura para escrever este texto que o faria em quarentena. A situação excecional que vivemos, com a pandemia do COVID-19, faz com que uma significativa parte de nós fique em casa, como medida preventiva, de modo a diminuir a propagação deste vírus. #fiquememcasa é a palavra de ordem que devemos todos seguir escrupulosamente para bem de todos nós.


Pese embora a gravidade do momento, esta situação inusitada ajuda-me a explicar a importância do tema que aqui me traz, a acessibilidade às coleções dos museus (nesta altura com foco na digital). Vejamos como.


Neste tempo de reclusão, assistimos a algumas notícias sobre os museus que podemos visitar online, as coleções que estão disponíveis, as ferramentas que temos ao dispor para continuar a “ver” os nossos objetos e a usufruir deles para deleite, educação, estudo, etc. Estas ferramentas não são novidade nos museus, mas parece que precisamos da negação do acesso físico às coleções para que agora todos percebam a importância do acesso online e do trabalho que os museus desenvolveram nos últimos anos nesta matéria. Um trabalho sério e necessário, que tem por base uma mudança de paradigma nas instituições de memória (bibliotecas, arquivos e museus – as BAM, na feliz sigla que a Maria José Almeida cunhou na minha mente) ocorrida nos últimos anos e que vai dando agora os seus frutos.


Em grande medida esta mudança é fruto da oportunidade trazida pelo desenvolvimento tecnológico das últimas décadas, acentuado, recentemente, com o massivo e generalizado acesso à rede através da profusão de equipamentos de comunicação pessoais e com a redução do custo (acompanhada pela velocidade vertiginosa) de comunicação de dados que até há bem pouco tempo era, para muitos, apenas uma miragem. Oportunidade essa que tem sido aproveitada pelos museus para publicar online, normalmente através de repositórios dedicados, as informações sobre as coleções que têm ao seu cuidado.


Embora seja um tema muito interessante, não cabe aqui um histórico da evolução destas coleções online, museus digitais, acessos à coleção ou outras designações que assumiram em diversos locais e projetos. No entanto, importa dizer que desde as primeiras tentativas de publicação das coleções na rede, até ao momento atual, há um salto gigantesco em tudo o que está envolvido neste tipo de processos.


Não precisamos, para exemplificar esta situação, de ir aos primórdios da internet. Ninguém, ao olhar para o atual website da coleção do Rijksmuseum, o Rijksstudio, se recorda facilmente do site que o museu disponibilizava em 2010 (sim, apenas 10 anos atrás), mas com a ajuda do Internet Archive, podemos ainda recuperar essa memória e ver como era na altura o site com a coleção do mais conhecido dos museus holandeses.

Figura 1- Captura de ecrã do website do Rijksmuseum, de 2010 (Internet Archive)

No entanto, para passar de uma realidade para a outra foi necessário um esforço considerável por parte deste museu para que agora, e já desde 2013, seja possível aceder a um dos mais notáveis “museus virtuais”, ou, como prefiro, a uma das mais notáveis coleções digitais no universo dos grandes museus.


Uma parte considerável desse esforço está descrita, por Peter Gorgels, digital manager do Rijksmuseum, no artigo apresentado à conferência Museums and the Web de 2013, realizada em Portland, EUA, intitulado Rijksstudio: Make Your Own Masterpiece! (GORGELS, 2013). São descritos aí alguns dos argumentos a favor e dos receios do museu em desenhar e implementar uma nova estratégia digital, arrojada em meu entender, mas que apesar dos conhecidos benefícios ainda levanta algumas questões e dúvidas em muitos profissionais do sector. O resultado é o que encontramos no atual website do museu.

Figura 2- Captura de ecrã do Rijksstudio website - coleção online do Rijksmuseum atualmente

Embora esteja do lado dos que vêm esta mudança de forma positiva e com bastante mais benefícios do que desvantagens, é importante reconhecer os receios demonstrados por museus e profissionais de museus nesta matéria e que se deve procurar mitigar algumas crenças em que assentam e, a par, integrar medidas para avaliar o impacto das desvantagens que se observem nestas transições, capacitando os museus para procurar soluções que as resolvam definitivamente ou, pelo menos, as minimizem. Falamos, por exemplo, da perda de receitas associadas à venda dos direitos de utilização das imagens ou da perda de controlo sobre como e quem as utiliza, entre outras.


Estar ciente das vantagens e desvantagens, principalmente nos projetos mais inovadores, é essencial para a criação de projetos bem-sucedidos, mas como é que podem os museus providenciar este tipo de acessos de uma forma sustentável? A resposta não é simples e implica, do meu ponto de vista, um envolvimento transversal a todas as áreas do museu.


A resposta implica um compromisso com a definição da missão do museu e, consequentemente, com a criação de estratégias e políticas que possibilitem implementar planos de ação nos museus para uma real utilização da sua coleção física e, ao mesmo tempo, da sua representação digital com o objetivo principal de cumprir a razão de existência da instituição através das funções museológicas, ou seja, adquirir, preservar, estudar, documentar e providenciar acesso público.


O modelo não é novidade, mas assenta no que se vem defendendo com os sistemas de creditação de museus, nomeadamente o inglês[1], em que é pedido às instituições museológicas que desenvolvam, assente na sua missão, ou seja, um “clear statement of purpose” do museu nas palavras nos termos usados na sua documentação de apoio, uma estratégia e política de gestão de coleções que sejam documentos orientadores de todas as ações do museu e dos seus profissionais e permitam, na altura devida, avaliar o desempenho e o cumprimento dos objetivos propostos.


Estes documentos, nomeadamente a política de gestão de coleções, são essenciais para o museu, mas também para os seus públicos ou audiência. A sua existência e divulgação dá-nos, a todos, o conhecimento das regras com que o museu se gere e gere o nosso património e disponibiliza os instrumentos necessários para a avaliação. Responsabiliza o museu perante o seu público e tutela.

Pese embora a importância da avaliação, a política de gestão de coleções não tem apenas esse propósito. Antes de mais deve ser um documento único que consolide tudo o que deve ser tido em conta para o desenvolvimento, informação, conservação (incluindo aqui a segurança e salvaguarda) e acessibilidade da coleção do museu, partindo de um diagnóstico profundo sobre a coleção nos seus diversos prismas. É, ou deve ser, um documento que assenta na missão do museu e define, da forma mais clara possível, o que fazer nas incorporações, nos abates, na documentação das coleções, na informação que geramos a cada momento para as gerir, nas formas de as conservar, guardar e salvaguardar e, obviamente, na forma como permitimos o acesso a elas e à sua utilização física, digital e intelectual pelas audiências do museu.


A partir dele o museu pode definir planos de ação, informados pelo diagnóstico feito e pelas decisões políticas, para gerir e documentar as coleções em benefício dos objetivos e missão do museu. Nestes planos definem-se recursos, calendários, metas a alcançar e os instrumentos que nos permitem avaliar a sua evolução, de forma a concretizar as ações do museu no que diz respeito ao desenvolvimento, documentação, conservação e utilização, ou acesso, à sua coleção.


Como é óbvio, o museu não precisa de preparar esta imensidão de documentos normativos e reguladores da sua atividade. Basta, para dar acesso à sua coleção, ter um conjunto de dados reunidos, sem qualquer critério definido, colocar esses dados num sistema de informação e, sem grandes preocupações, carregar no botão mágico que diz “Publicar online”! É o que farão muitos, pressionados pelo afã da presença digital obrigatória, sem pensar devidamente nas consequências de tal decisão. Uma decisão que não raras vezes se revela, a médio prazo, um erro cujas consequências ainda não conseguimos medir convenientemente, mas que certamente provocam os mesmos sentimentos nas audiências do museu que uma exposição mal preparada ou um catálogo publicado sem o rigor e cuidado que os museus normalmente lhes dedicam.


É certo que os museus publicam catálogos e organizam exposições há muito tempo sem ter estes instrumentos definidos ou publicados. Mas um catálogo ou uma exposição são meios de divulgação controlados inteiramente pelo museu, pelo seu produtor. Um museu online, uma coleção digital, um museu virtual ou catálogo digital é organizado, ou melhor, preparado pelo seu detentor, mas assim que é disponibilizado na rede assume um papel diferenciado da coleção original, no qual os conceitos de utilização, reutilização, partilha, dados abertos e interligados têm assumido, face ao desenvolvimento tecnológico, uma relevância cada vez maior por permitirem projetos integrados[2] e uma economia de recursos[3] muito interessantes.


A par, a existência destes documentos reguladores permite também à instituição definir as regras para lidar com a questão dos direitos legais atribuídos aos bens que compõem a coleção e definir, também no caso de bens em domínio público, as regras de acesso e utilização à sua representação digital, o que motivou, de resto, a política de acesso implementada no Rijksmuseum. Evitando, desta forma, tratamentos ambíguos de disseminação incorreta ou indevida de património cultural com restrições, ou mesmo impedimento, de uso por terceiros.


A ânsia que todos sentimos em publicar online deve ser, apesar de toda a pressão existente, refreada. Os museus devem olhar cuidadosamente para essa obrigação – sim, porque ainda assim é uma obrigação – e preparar esta tarefa com tempo, não tendo pressa em publicar online apenas, mas sim publicando online as coleções digitais com o mesmo cuidado com que preparam as suas exposições permanentes e temporárias. Afinal esta é, cada vez mais, a primeira porta de entrada de muitos que depois visitam o museu fisicamente.


Se o conseguirem, começando devagar e com passos pequenos, mas firmes, figurarão na lista dos museus que continuam “abertos” durante pandemias. Na lista em que estão o Rijksmuseum, o Prado, o British, o Hermitage, a Galeria dos Uffizi, o Metropolitan, a Smithsonian, o Cooper Hewitt, o Guggenheim, o Museu de História Natural de Londres, a National Gallery, o V&A, mas também, em português, o Museu de Lisboa, o Museu de Marinha, o Museu de Arte do Rio, entre outros bons exemplos de museus que encaram esta tarefa como uma necessidade urgente.


Não esperemos então pela próxima pandemia! Mas por enquanto #fiquememcasa e deleitem-se.



[1] Disponível no site do Arts Council - https://www.artscouncil.org.uk/supporting-arts-museums-and-libraries/uk-museum-accreditation-scheme (consultado em 10-03-2020).

[2] Como é o caso da Europeana Collections disponível em https://www.europeana.eu/portal/en (consultado em 10-03-2020).

[3] De que podem ser exemplo os diversos casos de utilização das diferentes coleções online para o ensino, conforme descritos no seguinte artigo (https://mw17.mwconf.org/paper/discovering-creating-and-sharing-digital-museum-resources-a-methodology-for-understanding-the-needs-and-behaviors-of-student-users/)

 

Alexandre Matos é director do Departamento de Investigação e Formação da Sistemas do Futuro, Professor Afiliado do Departamento de Ciências e Técnicas do Património da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e membro da direcção do CIDOC. Escreve sobre museus, museologia e documentação no Mouseion. É membro da Acesso Cultura porque acredita que há muito a fazer para que todos tenham oportunidade de acesso à Cultura de forma equitativa, sem qualquer tipo de descriminação ou diferenciação.


O autor utiliza o Acordo Ortográfico.


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