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Cidadania ou criação de públicos?


Uma das orientações das políticas museológicas e patrimoniais que mais me preocupa é a chamada “criação de públicos”. Enquanto adjetivo, o termo público remete para o interesse de todos, e nesse sentido envolve um sentido de dignificação da cidadania individual, que constitui a base dos coletivos nas sociedades pós-aristocráticas. Porém, quando usado no quadro da definição de estratégias de atratividade do património cultural, não se tratando de adjetivar coisa nenhuma, nem de considerar o conjunto da população (que já está criada, sem a interferência de quaisquer políticas culturais centralmente determinadas), o uso da palavra “público” remete para a consideração de grupos de pessoas enquanto espectadores, assistentes ou, de forma mais ampla, consumidores.


Numa lógica de mercado, não há nenhum mal em promover o consumo de “coisas”, e nisso se devem incluir os bens culturais. Porém, tenho sérias reservas a que essa possa ou deva ser a estratégia dos serviços públicos (adj.), que têm como alvo não “consumidores” mas “cidadãos”.


A diferença pode parecer um preciosismo, mas não é: uma estratégia orientada para a criação de públicos implica a promoção de um alinhamento entre os destinatários (as pessoas) e os produtos/serviços, que é medida fundamentalmente pela satisfação dos primeiros, traduzida no seu crescente afluxo. Para regular o processo, podem ser criadas normas de controlo e monitorização de qualidade, que de forma maior ou menor consideram a intervenção dos destinatários na verificação da adequação desses produtos/serviços às expectativas. Ou seja, o foco do processo são os produtos/serviços e o seu “sucesso” e aceitação. É o caso da venda de “ao público” (subst.) de televisores, batatas fritas ou outras coisas, de cuja produção esse público se encontra alienado, podendo a elas aceder mediante um qualquer tipo de pagamento.


Numa estratégia orientada para os cidadãos, porém, o objetivo é que o alinhamento entre as pessoas e os serviços/produtos seja estruturado em torno de mecanismos participativos de sentido crítico e co-construção de conhecimento, cujo sucesso é medido pelo crescimento da autonomia individual (núcleo da dignidade da pessoa humana), traduzida numa crescente participação na vida em sociedade (núcleo da cidadania). Para regular este tipo de processos, podem ser criados mecanismos de avaliação de qualidade que medem conhecimentos e competências adquiridas, incluindo a literacia específica, verificando a capacidade transformadora desses produtos/serviços, em termos de alteração dos recursos (cognitivos, culturais, económicos,…) possuídos pelos cidadãos. Ou seja, o foco do processo são as pessoas e a sua capacidade de agir de forma livre, crítica e digna. É o caso do sistema público (adj.) de ensino ou de segurança social.


Na aferição do “sucesso” que têm tido os nossos museus, parques e bens culturais em geral, seria útil perceber se os indicadores quantitativos (centrados no número de visitantes e no volume de negócios) correspondem mais a uma estratégia pública (adj.) para cidadãos ou a uma estratégica mercantil para públicos (subst.).


Os mercados têm amplas consequências positivas, da criação de emprego à satisfação de consumidores, mas oscilam, crescem e desmoronam em ciclos de vida curtos. A cidadania não produz crescimento e sustentabilidade por si só, mas é o núcleo da resiliência e da capacidade prospetiva. As estratégias de gestão pública do património cultural não deveriam ser orientadas para esta última, deixando à economia a primeira dimensão?


P.S. Sei de uma comunidade, em Portugal, que ficou animada com os anúncios, públicos, de uma estratégia de valorização do património cultural imaterial, especialmente por o Decreto-lei de 2015 o identificar com as manifestações culturais “que as comunidades, os grupos e os indivíduos reconheçam como fazendo parte integrante do seu património cultural, e que, sendo transmitidas de geração em geração, são constantemente recriadas pelas comunidades e grupos em função do seu meio, da sua interação com a natureza e da sua história, incutindo-lhes um sentimento de identidade coletiva.” e por considerar indispensável o “consentimento das comunidades, grupos e ou indivíduos que se constituem como respetivos detentores”. Por essa razão, essa comunidade de imediato pediu apoio técnico e estruturou uma proposta de inventariação de uma sua tradição, que foi submetida para apreciação há quase dois anos. Desde essa data, e apesar de diversos pedidos orais e escritos, nunca mais a tutela achou que fosse relevante informar os requerentes e a comunidade envolvida, aceitando ou rejeitando a proposta. Será por ser um público pequeno?

 

O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico.

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