Escrevo-vos ainda de casa, onde estou em teletrabalho desde março. Uma radical reviravolta num dia-a-dia que era sempre variado, ora numa escola, ora no arquivo, fazendo esta ou aquela atividade educativa, num corrupio sem descanso. Há um ano atrás, escrevia aqui sobre os públicos distraídos e sobre as estratégias para os conquistar, no meio de uma imensa oferta cultural que nos obrigava a dar o nosso melhor para sobressair. Um ano depois (e que ano!), tudo mudou drasticamente.
É muito fácil focarmo-nos em todos os aspetos negativos trazidos por esta pandemia. A falta de trabalho e a incerteza nas fontes de rendimento, as relações familiares levadas ao limite da exaustão, o isolamento, o medo, o aborrecimento, alguma impaciência para com as regras impostas que limitam os nossos direitos básicos de circulação e de contacto com os outros.
Por outro lado, este terrível ano deu-nos a oportunidade de repensar tantas coisas, incluindo o que podemos mudar no nosso modo de vida. Depois disto, podemos sair mais fortes, se aproveitarmos esta travagem brusca para refletir sobre como queremos avançar.
Vamos então pegar neste ano tão estranho, espremê-lo bem e apreciar o que nos trouxe de positivo:
- Tempo para pesquisa, formação e reflexão, em dezenas de livros lidos e milhares de horas ao computador assistindo a webinars (quem antes disto tinha ouvido esta palavra?!) abrindo novos e variados rumos de investigação.
- Um gosto renovado pelo que fazemos e pela importância que a criatividade e o espírito crítico sempre continuarão a ter na construção do nosso futuro.
- Um olhar novo sobre as potencialidades do meio digital: a criação de atividades educativas por via digital, destinadas a diferentes públicos que há anos integravam as nossas listas de objetivos e nunca eram devidamente exploradas, por falta de tempo e de conhecimentos técnicos. Este foi o ano, o tempo para a reinvenção. Oportunidade inesperada para reformular conteúdos e imagens gráficas e reforçar e diversificar a divulgação nas redes sociais, chegando diretamente a casa de tantas pessoas.
- Novas relações de trabalho, contacto com outras equipas e outras disciplinas, criando oportunidades de aprendizagem e de encontro.
- O exemplo positivo de tantas pessoas que saíram da sua zona de conforto para ajudar os outros, estimulando o nosso sentido de entreajuda e a capacidade de superação.
Suspeitamos que quando a “tempestade” passar vamos encontrar uma sociedade mais frágil, ferida, dividida, desigual, com menos tempo e disponibilidade (até mental) para a cultura. Sabemos também que a grande parte dos mediadores culturais que há um ano atrás estavam cheios de trabalho hoje vivem cheios de incertezas quanto ao presente e ao que o futuro lhes reserva. Mas o nosso regresso será tanto mais necessário quanto maior e mais prolongado tiver sido o afastamento e isolamento entre as pessoas e as práticas culturais coletivas.
Até que haja de novo a possibilidade de estimular curiosidades, inspirar desejos de abrir portas e ajudar a construir memórias que nos dignifiquem... aguardamos com ansiedade um recomeço mais fundado no essencial, por mais longínquo que esse recomeço nos pareça ainda.
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