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Salvados de férias: o belo exemplo do director do Museu Carlos Machado


No Verão, tempo de férias, vivemos uma espécie de Fúria do Açúcar: “No Verão os dias ficam maiores; No Verão as roupas ficam menores; No Verão o calor bate recordes; E os corpos libertam seus suores.” É o tempo da chamada silly season, de “ver o pôr-do-Sol patrocinado por uma bebida qualquer”.


Alguns procuram nestes ínterins das vidas esquecer graves assuntos. Outros, ao invés, para além de “saltarmos e rirmos na praia”, continuamos atentos ao mundo em redor, seja sob a forma das leituras que deixámos acumular, seja sob a forma dos jornais que continuamos a respirar. Daqui resultam o que poderíamos chamar os nossos bons salvados de férias. Dedico estas linhas hoje a partilhar um, que estou certo terá passado despercebido à generalidade dos frequentadores deste espaço.


Em Agosto finado, o jornal que dos Açores diz trazer Correio, registava entrevista com o padre Duarte Melo, ex-director do Museu Carlos Machado, titulando: 'Os museus precisam de ter maior independência' do poder político. Trata-se de uma peça notável, que deveria ser objecto de leitura e estudo por todos os que se interessam por museus. As previsíveis dificuldades em obtê-la, levam-me a que desta vez aproveite o espaço que generosamente aqui me dão para principalmente transcrever algumas das suas passagens.


Recordemos dois dados de base. Primeiro, o de que constitui o Museu Caros Machado, em Ponta Delgada, um dos principais e melhor organizados museus portugueses, com colecções diversificadas (e magníficas) uma programação de grande qualidade, frequentemente inovadora (vale a pena navegar no seu sítio Internet). Segundo, o de que a evolução brilhante ocorrida nos últimos anos se deve a uma equipa de excelência, motivada e coordenada por um director de grande qualidade, o padre Duarte Melo.


Como sempre tenho dito, não considero necessários “museólogos” para dirigir museus. O que faz falta, sim, são técnicos com conhecimento das colecções, focados nelas e no serviço do público, com boas capacidades de liderança das equipas… e com independência/coragem para, sem calculismos excessivos quanto às consequências, dizerem o que tem de ser dito em defesa dos “seus” museus.


Neste caso, o director era um padre, que entretanto já cumpre outra missão, como capelão num hospital de Ponta Delgada. Na altura da saída, que a entrevista em referência assinala, faz um balanço da actividade realizada, que é efectivamente notável. Vejamos:


Como encontrou o Museu Carlos Machado há 15 anos atrás, quando tomou posse como Director?


(...) Andamos vários anos com estes problemas e por isso o museu teve de se reinventar. Já não tinha os seus espaços disponíveis ao público e estava fechado porque não tinha as condições de acessibilidade, de conforto. A própria museografia tinha também de ser revista e reformulada. Formamos o Conselho Técnico, pensou-se a instituição no seu todo e definiu-se de facto um novo paradigma: um museu de território e para a inclusão. Conseguimos depois arranjar urna carrinha para o museu móvel que realizou um processo de sensibilização para as questões patrimoniais na ilha de São Miguel. Temos sempre a preocupação de não termos uma programação banalizada. Mas sim de termos uma programação que emergia sempre dos seus espólios e das suas colecções. Isto porque entendo que os museus não são lugares de entretenimento e têm de ter alicerces nos próprios valores culturais e identitários. Quando entrei também tive a necessidade de perceber as potencialidades e fragilidades do museu e fizemos uma avaliação através da análise swot. Isso envolveu todos e criou coesão na equipa Nos primeiros tempos reunia a equipa todas as semanas, onde panificávamos, discutíamos e avaliávamos e criou-se uma dinâmica interna para que a equipa sentisse pertença em relação à instituição e se envolvesse nos projectos. Tivemos projectos variados com parcerias nacionais e com grandes instituições como a Gulbenkian, Museu do Chiado, Museu de História Natural. (…)


[mais à frente, fazendo o balanço de 15 anos do seu mandato directivo]

Foram 15 anos muito bons, no sentido em que tivemos uma belíssima equipa de gente entusiasmada e empenhada. Claro que a Covid nos colocou também numa situação mais difícil com o teletrabalho, com os horários desfasados e houve uma baixa de produtividade com a pandemia. Mas valorizo muito a equipa e aprendi muito com o Museu, com as pessoas, conheci imensa gente, mas a maior alegria que tenho, prende-se com o facto de fazer perceber que o Museu é de todos. Tivemos uma boa relação com o poder autárquico que percebeu a dinâmica do Museu Carlos Machado e quero agradecer a todos os presidentes da Câmara que colaboraram sempre connosco e perceberam a dimensão do nosso trabalho. Ganhámos inclusivamente prémios internacionais: dos Museus Ibero-Americanos; um prémio de acessibilidades e outro do Serviço Educativo e portanto o Museu projectou-se a nível nacional com dois projectos muito bons em relação ao território que foi o“Sete Cidades para Além Ca Paisagem”', em que estivemos a trabalhar junto das pessoas, e agora o “Fenais a Fenais”, que Inclusivamente traz para a Região 760 mil euros. Este é um projecto bastante abrangente, que requer muitas parcerias, conhecimento de terreno e não poderá haver visões politizadas e de politiquice que venham a criar obstáculos e envenenar os canais deste trabalho que é feito no terreno. O balanço é muito positivo, sinto-me contente por isso e agradecido a todas as pessoas que me apoiaram. O trabalho está à vista e, em 2019, recebemos 40 e tal mil pessoas visitas o que também é sinal da transformação que houve em termos turísticos na região, sendo que o Carlos Machado não esteve indiferente a isso, tendo reunido com vários agentes turísticos. Outras das coisas muito positivas neste meu trabalho no Museu foi termos conseguido comprar a obra do Canto da Maia que é o escultor mais referenciado do modernismo em Portugal e um açoriano ilustre. O Museu recebeu também muitas doações ao longo destes anos e quando isso acontece, significa que as pessoas estão envolvidas com a instituição.


O “pretexto” para a saída terá sido a pretensa oposição do Director à cedência do chamado boi de raça anã do Corvo para o Ecomuseu daquela ilha, que inclusivamente deu origem a episódio acrimonioso no Parlamento Regional. É fácil perceber que se trata de “pretexto” somente. Primeiro, porque o ex-director do Museu Carlos Reis alega que nunca se opôs que a cedência se pudesse realizar, mas justamente sob a forma de cedência ou depósito, não de alienação da propriedade. Depois, porque o que haveria de discutir é se o magnífico projecto do Ecomuseu do Corvo, como de qualquer ecomuseu, precisa assim tanto de peças avulsas, musealizadas há muito, se isso não constituirá de algum modo uma deriva supérflua, senão um entorse danosa, na sua condição básica, tão bem exposta na sua visão estratégica que conhece merecida reputação nacional.


Um “pretexto”, pois. E o ex-director não evita dizer, antes põe em relevo, que, para além da espuma dos dias, aquilo que levou à sua saída foram as constantes e crescentes intrusões da tutela política na vida do dia-a-dia do museu, incluindo na sua programação. Vale a pena transcrever esta sequência de perguntas e respostas:


Sente que o poder político interfere muito na gestão destas instituições?


Interfere e os museus precisavam de ter maior autonomia porque são instituições da sociedade civil. Para já há sempre uma falta de recursos financeiros para as instituições e nomeadamente para a sua programação. É sempre um quebra-cabeças gerir o plano de actividades porque os recursos são sempre insuficientes. Por isso, o Museu Carlos Machado viveu sempre de muitas parcerias locais e do mecenato, embora esse mecenato local seja muito frágil. Outra preocupação que tive sempre foi a do museu estar em diálogo com outras instituições culturais e essas parcerias não podem ser controladas pelo Governo porque emergem de forma natural. Um Director de um museu tem de gerir o pessoal e tem de ter uma visão em termos de futuro. Não pode ser para o imediato, tem de ser pensado a longo prazo e encontra os obstáculos das tutelas e do poder politico que muitas vezes não estão em consonância com aquilo que se pretende em termos culturais.


O poder político funciona muitas vezes como força de bloqueio?


Claro. Por exemplo, nesta última fase houve nitidamente essas forças de bloqueio o que é um prejuízo para uma instituição. É desmoralizante quando as tutelas se apresentam como poderes quase absolutistas e que criam até alguns receios nas pessoas. Isso revela um grande desrespeito pelas instituições. Não falo apenas nesta tutela, porque também senti problemas com as anteriores.


Sentiu sempre esse problema?


Sim e isto não é nenhuma novidade no sentido de ter sido uma mudança de paradigma político ou de Governo. Os museus precisavam de ter maior independência e cheguei a dizer a alguns directores regionais que dessa forma não seriam necessários directores de museus, a tutela resolvia os problemas e poupava imenso dinheiro. A tutela tem o seu papel mas não deve gerir as questões de programação. Isso não lhes compete. Deve delinear as políticas culturais e não se deve imiscuir em questões de gestão corrente. Há essa tentação das tutelas quererem mandar e isso também revela que estamos num meio pequeno, onde essa é uma forma de expressar o poder e a autoridade de uma forma desadequada.


Procuro no meu baú de memórias e dificilmente encontro afirmações tão frontais e de independência tão assertiva por parte de um director de museu português. Como é sabido, eu próprio protagonizei algumas: cf., por exemplo, o texto que escrevi no Público em 12 de Janeiro de 2012, intitulado “Como se faz (e desfaz) um director de museu”. E, em passado mais distante (“no tempo em que os animais falavam”, cheguei a dizer um dia), houve até veementes tomadas de posição conjuntas de todos os directores dos museus do Ministério da Cultura. Mas nenhuma atingiu a frontalidade e a grandeza filosófica do que agora afirma Duarte Melo, o qual acrescenta ainda:


Voltaria a exercer o cargo no Museu caso tivesse um novo convite?


Não. Porque entendo que esse tempo passou. Não podemos ficar toda a vida nas instituições porque nos vamos acomodando. 15 anos foi muito tempo e fui ficando porque tinha um projecto em meio: abrir Santo André, as reservas e depois veio o Fenais a Fenais. Caso contrário não tinha aguentado 15 anos. Nunca me curvei a tutelas porque eu só me curvo diante de Nosso Senhor. Diante das pessoas nunca me irei curvar e claro que isso por vezes causa tensões mas eu estou apenas dependente de Deus.


Como disse antes: hoje importa sobretudo aqui partilhar um dos meus bons salvados de férias. Mas faço-o com um travo algo agridoce. Será que apenas encontramos hoje esta capacidade de ser livre em alguns homens da Igreja, aqueles que podem responder que “diante das pessoas nunca me irei curvar e claro que isso por vezes causa tensões, mas eu estou apenas dependente de Deus”? Dir-se-á que estão estes suportados em instituição milenar e tão tentacular que lhes pode facilmente garantir a retaguarda, que a outros faltará, fazendo-os mais timoratos. É certo. Mas todos sabemos que, ainda assim, muitos dos tais “homens de igreja”, máxime dos clérigos, a maioria porventura, revelam, e sempre revelaram ao longo dos séculos, comportamentos, quiçá traços de carácter, opostos aos da frontalidade, sendo exímios na sua condição florentina de servidores do poder mundano.


Não, os grandes valores que fazem o carácter, sejam eles os da probidade ou os da verticalidade, juntamente com a coragem que lhe anda associada, constituem virtudes distribuídas indistintamente entre crentes e descrentes, ou entre ricos e pobres. Situando-me eu onde me situo do ponto de vista religioso (e político), atrevo-me mesmo a suspirar quando penso que o padre Duarte Melo constitui bom exemplo para tantos agnósticos ou ateus, republicanos as mais da vezes, social-democratas ou socialistas algumas outras, mas frequentemente esquecidos da condição que dizem adoptar.



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