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Património: educação do olhar?


Organizamos a nossa memória, bem como as nossas antecipações/expectativas, em torno de imagens mentais, que sucessivamente vamos reorganizando num jogo que altera, ao mesmo tempo, a percepção do passado e visão de futuro. No plano individual reconhecemos essas alterações e oferecemos-lhes uma conotação mais ou menos negativa, chamando a umas “lapsos de memória” (quando não “mentiras”) e a outras “faltas de coerência” (quando não “traições” ou “oportunismos”).


Tudo parece processar-se de forma diversa, porém, quando registamos essas alterações no plano coletivo. Se é certo que também se registam conotações negativas (“falsificações” do passado, ou “ilusões” sobre o futuro), existe atualmente uma crescente valorização das descontinuidades de perceção, valorizando quer as revisões do passado (entendidas como expressão de “pluralidade, diversidade e direito à diferença”) quer as visões disruptivas sobre o futuro não raro associadas a “inovação e criatividade”). Numa sociedade que se orienta cada vez mais para a melhoria contínua, à qual se associa a noção de qualidade, a mudança tornou-se um valor quase absoluto, e a “continuidade” (em património poderíamos dizer a “conservação”), é muitas vezes entendida como uma expressão retrógrada, elitista, até mesmo “antidemocrática”.


A expressão deste processo no campo cultural é a progressiva substituição do anterior binómio “história e património” (que dominou até finais do século XX) pela articulação “memória e animação cultural”, que já impera nos nossos dias, dos programas de financiamento (orientados para a criatividade e inovação) a muitas estratégias museológicas (orientadas para as temáticas do presente, para a dimensão performativa e para o entretenimento visual e digital – incluindo a proliferação de “museus sem coleções”).


Haverá certamente muitas razões que explicam esta mudança de paradigma, do envelhecimento da população (atuando a ideia de inovação como um substituto de opiáceos, na construção da ilusão de juventude perpétua através da inovação e da criatividade constante, ao longo da vida), à precariedade do emprego (funcionando a oferta do “direito à diversidade de passados” como um correlato da substituição da solidariedade social pela “responsabilidade individual”). Podemos, também, reconhecer nestas tendências uma crescente alienação (redução da noção de património como espaço de estímulo à reflexão crítica) e mercantilização (de que a máxima expressão é a redução dos visitantes à condição passiva de “público” que importa “educar”).


Mas não creio que se trate de um qualquer plano perverso, mas antes de uma nova etapa do processo de aceleração dos processos comunicacionais e cognitivos e, em especial, da grande revolução sensorial em que estamos a viver: a afirmação da visão como sentido dominante na construção do entendimento do mundo. Trata-se de uma revolução porque a compreensão do território, ou do contexto, em toda a história passada da Humanidade, nunca foi dominado pela visão, que é um sentido que se afirma tardiamente na evolução dos indivíduos (muito depois do tato, da audição, em particular) e claramente insuficiente para a plena apreensão das subtilezas desse mesmo contexto. Sobretudo o tato, foi sempre um sentido estruturante da construção de relações com coisas e pessoas, oferecendo informações sobre texturas, temperaturas ou (com o gosto) sabores, essenciais para romper com as perceções visuais que, não raro, produzem falsas imagens. Da poesia (“Amor é fogo que arde sem se ver” – tato) aos textos religiosos (“Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra de Deus” – paladar e audição) ou ao teatro (“Há algo de podre no reino da Dinamarca” – olfato), a literatura abunda no reconhecimento da relevância da pluralidade dos sentidos.


Porém, na sociedade atual a imagem visual tornou-se, crescentemente, dominante. Não é um processo muito antigo, pois está diretamente relacionado com a expansão da comunicação visual instantânea, iniciada com a televisão e potenciada pelo mundo digital. Se os registos do passado destacavam em primeiro lugar a capacidade retórica e de oratória nas lideranças (dado que a voz, e o som em geral, era o principal meio de comunicação de massas do passado – mesmo até meados do século XX), a estética visual foi ganhando predominância nas últimas décadas: não já como imagem “permanente” (como nos ícones, na arte rupestre ou mesmo na fotografia), mas como imagem “em transformação”, que acabou por criara ilusão visual da “transformação pela imagem”.


Este império da visão resulta numa clara perda de competências cognitivas (por amputação de informação sensorial diversa), simplifica o entendimento dos contextos (desta forma ameaçando as sociedades livres e democráticas, desprovidas de instrumentos para a consciência das necessidades com que se defrontam em cada momento), pasteuriza o passado (reduzido a memórias de curiosidades – de que o negacionismo é uma expressão clara) e bloqueia a construção transformativa (multissensorial) do futuro (reduzida à construção e imagens visuais, ou cenários, por sua vez entendidos como opiniões e não como processos históricos).


Creio que grande parte dos debates atuais na sociedade se trava neste campo: deve a gestão cultural do património ceder ao domínio da imagem visual (o que inclui a construção de agendas centradas no presente e nos debates sociais conjunturais) ou, inversamente, deve persistir na tradição da conservação, do tempo médio e longo ( o que inclui a convicção racionalista de que esse tradição potencia a transformação global, socialmente participada, através do raciocínio critico de base comparativa)? O atual debate no seio do ICOM exprime, penso, esse debate.


Não escondo que não acredito na utilidade de uma gestão patrimonial e museológica animada por “agendas”, não por elas não serem importantes, mas porque o papel dos museus e do património é, também, o de recordar, face a cada angústia ou entusiasmo do quotidiano, que ele se inscreve num tempo e num espaço muito mais amplos. Sem esta dimensão, reduzem-se a noção de continuidade espacial (o que, entre outras coisas, facilita as guerras – o isolacionismo bélico alimenta-se dessa ignorância) e, sobretudo, de custo temporal nos processo de transformação (o que é a base da noção de “solidariedade intergeracional”, que na prática se está a perder, para além da ilusão dos discursos – a espuma de muito discurso hipócrita sobre o ambiente encontra aqui um terreno fértil para “ficar bem na fotografia”).


Mas a alternativa é possível, e a sociedade futura poderá ser mais “memorialista”, “performativa” e “aberta”, abandonando a angústia das contradições históricas ou da tangibilidade da dor dos processos de criação. Será uma sociedade, por isso mesmo, mais desigual, mais elitista e mais violenta, porque menos educada para compreender que, para além da emoção das imagens visuais que esbatem a diferença entre videojogos e guerras tecnológicas, há livros que ardem, há monumentos que são destruídos e, sobretudo, há pessoas concretas (e não apenas estatísticas) que morrem.


O património não é inocente, e a sua gestão deveria educar o olhar, ou seja, enquadrá-lo na diversidade sensorial crítica e na complexidade conceptual histórica).


P.P.S. Na minha última contribuição nesta coluna, referi num P.S. que há uma comunidade, em Portugal, que ficou animada com os anúncios, públicos, de uma estratégia de valorização do património cultural imaterial, e pediu a inventariação de uma sua tradição, submetendo dossier para apreciação há quase dois anos.

Passaram mais uns meses e a DGPC ainda não se moveu, talvez por andar à procura da tal comunidade.

Dou uma ajuda: chama-se “Pereiro”, e apesar de o pedido de inventário ter sido enviado também em formato digital (visual), possui uma tangibilidade específica: são pessoas concretas, que pagam efetivamente os seus impostos, que sentem as dificuldades do chamado “interior”, que ainda leem jornais em papel e ensinam aos seus filhos e netos as regras da boa educação, que esperam uma resposta qualquer (pode ser “olá”, “não percebi”, ou até mesmo “não”,…mas qualquer coisa) por parte do Estado e da sua Direção-Geral.

Virá essa resposta, ou devem os técnicos que apoiaram a comunidade voltar lá, vestidos com túnicas brancas e baraços ao pescoço, pedir desculpa?


Isto não é uma placa de xisto. Mas será que ainda se ensina porquê, nas visitas a monumentos e museus?
Isto não é uma placa de xisto. Mas será que ainda se ensina porquê, nas visitas a monumentos e museus?

 

O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico.



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