De todas as políticas de incentivo ao chamado “consumo cultural” nenhuma é mais controversa do que a gratuitidade da fruição do património e das atividades culturais. A medida faz parte da própria génese e da criação dos museus, e da história do seu acesso, associando-se sempre a uma ideia de “democratização da cultura”, mas os resultados apresentados têm-se mostrando dúbios no que tange à afluência do público, e difíceis de serem mantidos na medida em que a cultura sofre frequentemente de baixo investimento estrutural. Aplicada a gratuitidade em larga escala por entidades e instituições em Portugal e no mundo, será este o momento de repensar essa estratégia e de procurar novas formas de atuação?
A gratuitidade nos museus não é uma novidade: desde o século XVIII, França e Inglaterra têm utilizado variantes deste tipo de acesso para permitir a fruição e, principalmente, para incentivar as produções artísticas nacionais. O Louvre abriu em 1793 e já era gratuito para artistas e para o público nos fins-de-semana. Na Inglaterra, o British Museum Act de 1753 preconiza o acesso livre às coleções. Contudo, essas políticas, mesmo nesses países, não se manterão constantes para sempre. Em França decide-se, em 1921, cobrar um franco em todos os museus nacionais, permanecendo a gratuitidade apenas em feriados e domingos. Na National Gallery, desde 1880, decide-se aplicar um preço ao ingresso dois dias por semana. O atual e comum modelo de gratuitidade (o que se aplica uma vez por semana para os museus) reflete a bem sucedida experiência francesa de 1998, quando se estabelece, primeiro a título provisório e de forma restrita, a gratuitidade no primeiro domingo do mês em vinte e três museus da região parisiense e em outros onze de outras regiões próximas.
Mas a verdade é que entre a gratuitidade e o pagamento há uma série de variações possíveis. Medidas compensatórias ou diferenciais podem depender não só do dia mas também das próprias condições do visitante: se é profissional ou estudante da área, se está desempregado, se vem junto com a família, se é um habitante da localidade (com diversas variantes de níveis de pertença), se é público escolar, entre outros critérios. Estas medidas dão conta da recente percepção de que não existe apenas um público, mas vários públicos, com diferentes motivações, interesses e recursos para o usufruto da cultura.
Françoise Benhamou lembra que formular a discussão em torno da ideia da dicotomia gratuito-pago é formular uma má questão, já que há inúmeros métodos e técnicas para realizar cálculos que indiquem qual a melhor opção para a política de gestão cultural em causa. A história da taxação dos preços dos museus é significativa deste ponto de vista. Historicamente, o que se viu é que existe um sem número de fórmulas para permitir alguns tipos de acesso e potenciar outro tipo de dinamização da visita.
Ainda assim, as análises sociológicas têm mostrado que a prática de preços baixos ou mesmo gratuitos não aumentou o número de públicos de cultura. O interesse e a fruição do património ainda é socialmente restrito: o público do património é, grosso modo, limitado às classes médias e altas, sobretudo urbanas e bem qualificadas. É claro que é possível advogar que, em Portugal, o público escolar também é bastante representativo, sobretudo graças às visitas de estudo a museus e a sítios históricos e arqueológicos; todavia, desde os trabalhos de Bordieu sabe-se que, mesmo que a escola forneça conteúdos e formação cultural, é a família a maior responsável pelo desenvolvimento do “gosto” por este tipo de atividades.
Com efeito, mesmo não sendo recentes, as conclusões de Bordieu mostram a sua validade até aos dias de hoje. Os estudos têm mostrado que a gratuitidade efetivamente funciona para atrair mais visitantes, mas não para democratizar a cultura, já que os frequentadores, nessas oportunidades, costumam ser aqueles que já têm essas práticas culturais como hábito. Além disso, a gratuitidade carrega em si outros problemas, como por exemplo o facto de que mesmo países ricos dificilmente terem recursos próprios para bem gerir e valorizar permanentemente a totalidade do seu património, ou também o risco de que o não pagamento de entradas gere uma desvalorização psicológica do que é património, uma desvalorização dos seus recursos e dos seus trabalhadores. Logo, como política de gestão do acesso, a questão deve ser pensada cautelosamente e para fins que sejam criteriosamente justificáveis.
Para os gestores dessas entidades, o principal problema daqui decorrente é numérico: os públicos da cultura são um segmento de mercado bastante limitado. Sendo bastante restrito e requerendo trabalhadores qualificados, não é difícil compreender que os preços reais não sejam módicos e que assim se retro-alimente o ciclo: preços caros impossibilitam que pessoas com poucos rendimentos tenham acesso às atividades e aos produtos decorrentes da valorização patrimonial. Não por acaso é muito difícil, se não mesmo impossível, dependendo do campo de atuação da entidade, a total desvinculação e independência financeira face ao Estado e aos recursos financeiros públicos.
Considerando que a gratuitidade é um fator de atratividade, parece importante associá-la a outras propostas para ser uma efetiva ferramenta de “democratização cultural”. Trata-se então de estudar quais as recentes apostas para transformar o gratuito em política efetiva de atratividade. Uma delas é a “interpretação patrimonial”, ou seja, o esforço de investimento em vários meios (digitais, televisivos, virtuais e de acompanhamento ou preparação de visitas) para explicar e criar um vínculo entre o visitante e o que será experimentado. É necessário, por exemplo, aproveitar as plataformas digitais já gratuitas para estimular o interesse e o gosto, articulando-as com a visita presencial. Esse esforço não se pode restringir só ao contato com a entidade acolhedora mas deve atingir o público no seu quotidiano. Outro é a possibilidade de utilização de técnicas de gestão e de economia para se criarem avaliações e fórmulas que se adequem a cada situação: por exemplo, é possível equacionar uma exposição permanente gratuita e exposição temporária paga, ou equacionar a existência de lojas, restaurantes, e a oferta de áudio-guias e visitas guiadas como principais fontes de arrecadação de dinheiro, ou ainda a realização de eventos temáticos especiais, como espectáculos musicais ou multidisciplinares segundo projeto curatorial específico para determinado contexto e momento. Esses tipos de solução não são nem um pouco novos, mas hoje têm como recurso o desenvolvimento de pesquisas e parâmetros que podem servir de base para uma proposta mais apurada e para resolver a difícil equação entre a importância da democratização e a necessidade de obtenção de recursos financeiros. O caso do espectáculo performático em contexto inusitado e em sugestiva relação com dado património museológico pode ser particularmente sugestivo, porquanto vai de encontro à tão contemporânea formulação do usufruto cultural como experiência única. E não será a disposição para essa experiência um extraordinário filão financeiro a explorar?
De todas a maneiras, o pequeno levantamento bibliográfico feito para a exploração deste tema em Portugal deu conta da precariedade da sua discussão em trabalhos académicos, seguramente muito úteis e necessários para os gestores culturais. O único trabalho voltado exclusivamente para o assunto dá conta do impacto da gratuitidade em públicos séniores, com uma análise do caso do Museu Nacional de Arte Antiga. Parece-me urgente que outras análises mais completas sejam realizadas para que se saiba quando, como, em que contextos pode essa ferramenta ser bem utilizada.
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