É transversal o reconhecimento do valor das artes tradicionais enquanto definidoras da identidade cultural de cada território, da urgência de ações na salvaguarda desses saberes e da dificuldade de ver resultados efetivos nessas intervenções.
Perante as transformações tecnológicas e sociais do último século, estes saberes perderam expressão económica e, por consequência, houve uma redução drástica do número de artesãos ativos. Esta é atualmente uma classe altamente envelhecida e sem regeneração. Mas existem algumas variáveis que podem mudar este contexto.
Com o advento da industrialização e da subsequente globalização, a humanidade tem vivido uma espécie de uma vertigem de desenvolvimento e prosperidade. Mas os modelos económicos atuais estão a tender para o caos, e reconhece-se finalmente que, pela escala em que se age, se está a por em causa todo o planeta. Chegamos assim a esta encruzilhada com uma crise ecológica que é já também, uma crise social e cultural.
Os tempos atuais são tempos de reflexão. E geram-se novas visões. Se há coisa que essa prosperidade nos deixou, foi uma população preparada para pensar e agir criticamente.
Há uma nova consciência em crescimento, com um novo consumidor informado e exigente, que rapidamente deixará de representar um nicho e dará corpo a um novo paradigma de consumo, e de forma de estar no mundo. Nas suas decisões de compra pesam fatores como a justiça social, a consciência ecológica e a rastreabilidade do produto, até à origem das suas matérias-primas.
No processo de compra, o “storytelling” é cada vez mais importante. As narrativas ligadas às artes tradicionais são particularmente ricas porque são genuínas, moldadas pelo tempo e contêm em si toda a força do consumo consciente que representam.
Os produtos de artesanato são, por natureza, sustentáveis. São contruídos com materiais naturais, de proveniência próxima e por princípio geram pouco desperdício. São reparáveis e a maioria dos processos ancestrais não são agressivos para o ambiente.
Em contrarreação à proliferação de produtos massificados, há um interesse renovado pelo que é local e autêntico. Reconhece-se o valor cultural de determinada prática, a carga histórica inerente a um processo, a mestria gravada numa textura e adivinha-se a pessoa por detrás de um artefacto artesanal. E também em contrabalanço com a cultura digital, o feito-à-mão ganha um valor nunca antes visto, sem falarmos nas oportunidades de experimentar a técnica com o mestre artesão, nos cada vez mais populares workshops.
Estão criadas as condições para que as artes tradicionais possam voltar a ter relevância na economia. Mas é fulcral que as práticas e os produtos evoluam e se atualizem para estarem preparados para as exigências do mercado e dos novos paradigmas.
É importante termos consciência de que a melhor forma de salvaguardarmos um saber que subsistiu disseminado organicamente nas práticas da população, é mantê-lo ativo. Vivo. E estar vivo é sofrer transformações e não ficar cristalizado.
Quer-se com isto dizer que a produção não pode manter-se, ou pelo menos, cingir-se a modelos de artefactos de um tempo que já não existe. Os mesmos saberes podem ser utilizados na criação de produtos ligados à vida atual, e pensados, comunicados e distribuídos conforme as práticas contemporâneas. É pela inovação que a viabilidade económica terá mais probabilidades e a salvaguarda destes saberes terá mais sucesso.
São fundamentais os processos colaborativos com designers como motor de inovação, mas acima de tudo deverão ser trabalhados planos de capacitação dos artesãos atuais e de formação de novas gerações.
É certo que existem grandes particularidades na forma da transmissão de conhecimentos entre mestre e aprendiz, mas não há razão para o artesanato não subir ao ensino superior, e ser estudado, teorizado e investigado a par com as engenharias para otimizar processos, melhorar a performance dos materiais e isolar as melhores práticas para as disseminar, num ensino sistematizado, que dignifique e credibilize a profissão.
O desenvolvimento claro destas áreas, e uma profunda reflexão da sua amplitude, poderá ajudar-nos a construir novos modelos económicos, que provem que a linha percorrida até aqui não é a única alternativa e que se podem recuperar formas de estar em relação à ocupação do território, à exploração dos recursos, à organização do trabalho e do tempo e até à distribuição, ou mesmo da conceção da riqueza.
Comments