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O Património não se vende.



A indiferença é o peso morto da História.

(Antonio Gramsci)


Há aproximadamente 25 anos, vi-me envolvido num processo de defesa da manutenção da posse e usufruto públicos de uma vila medieval amuralhada, classificada como Monumento Nacional desde 1910.


O entendimento do poder central à época, que então pouco mais lhe importava que a Praça do Comércio e as praias da Figueira, era de que a sua venda seria possível e aconselhável a privados, sem fazer valer o direito de opção na compra e, muito menos, em provocar uma qualquer discussão ou plataforma de avaliação de soluções que permitissem manter aquele espaço na esfera do poder público.


O processo decorria num âmbito aparentemente privado, com o beneplácito do poder público central, entre uma família tradicional com cerca de uma vintena de herdeiros, proprietária desses mil hectares que estiveram ocupados no âmbito do processo da Reforma Agrária durante quase 20 anos, e que a pretendia vender a uma família de velhos-novos ricos, ligados, entre outras muitas e diversas actividades, a um ambiente de euforia financeira e económica que nos caiu no colo nos anos 90, fazendo que as suas empresas acumulassem lucros graças aos, aparentemente, infinitos fundos chegados da nova Europa.


Para a dita propriedade, limitada por duas ribeiras em mais de 70% do seu perímetro, servindo de fronteira com o país vizinho em cerca de 35% dessa linha divisória, e albergando um castelo/vila amuralhada, um monte alentejano de histórias fascinantes e de uma arquitectura técnica e funcionalmente modelar, um campo de refugiados do tempo da Guerra Civil de Espanha, entre muitas outras especificidades patrimoniais, anunciava-se a criação de um grande couto de caça, onde se entraria apenas por um acesso materializado numa ponte de tradição medieval, ao qual o comum dos mortais poderia aceder apenas em situações excepcionais. Na altura decorriam conversações entre os putativos proprietários e os representantes da autarquia para identificação da tipologia de projecto, objectivos, fórmulas de diálogo, algo pormenorizadas, que incluíram o estudo dos períodos em que se podia aceder à “vila”, que, pelo andar da carruagem, se resumiriam a dois ou três dias em Março e outros tantos por alturas de Agosto.


Para os potenciais e quase certos donos, a vila amuralhada seria palco de uma intervenção que não alteraria em grande monta a sua natureza de espaço para ruína, onde caberiam histórias a contar e reinventar em cada montaria, em cada espera a grandes veados, muflões ou outras espécies de caça grossa, nos intervalos de cada tiro de carabina.


Ali se chegaria de helicóptero, cuja pista improvisada se deveria situar nas entranhas daquela vila com uma ocupação humana contínua de cerca de 5000 anos e ali se criaria um projecto turístico que seria o surripiar de uma parcela fundamental para a compreensão do território de um pequeno concelho, “esmagado” pela distância a que está do seu próprio país e da fronteira improvável com os vizinhos espanhóis.


O uso público, diário, sazonal, como hoje acontece, acabaria, naturalmente, para o comum dos mortais… afinal, aquilo seria propriedade privada e a sua utilização estaria condicionada a regras imperativas que as centenas de experiências que se multiplicam por este país fora nos vão dando conta efectiva: caminhos de utilização centenária fechados a sete chaves, cercas de arame farpado impedindo o simples sentar na sombra de uma azinheira, paisagens sem fim só acessíveis das estradas e à distância de um prazer adiado a algum cantinho ainda esquecido pelas vedações.

Depressa se levantaram dúvidas ao facilitar da venda deste Monumento Nacional a privados, até porque durante vários anos autarquia e Estado investiram largas centenas de contos na consolidação de muralhas, abertura e manutenção dos acessos, criação de mais valias no interior da vila dionisina abandonada em princípios do século XIX e vendida a privados no final desse mesmo século, e havia uma estratégia de desenvolvimento traçada que incluía, naturalmente, este espaço como âncora.


Várias circunstâncias permitiram que a propriedade e a centenária vila medieval amuralhada fossem adquiridas pela autarquia e por uma empresa pública, como compensação ambiental pelo projecto que desenvolve, com o acordo e boa vontade, a partir de certa altura, de alguns dos ainda proprietários.


A velha vila amuralhada (não importa trazer aqui os abundantes pormenores que envolveram todo o processo, nomeadamente a da entrega da chave da porta do Castelo), continua a fazer parte do quotidiano desta comunidade e, acima de tudo, aquilo que ela é ou poderá ser está nas mãos dos cidadãos de um concelho e de uma região e não apenas de dois ou três representantes de instituições (sejam elas empresas privadas ou instituições governamentais) para os quais tudo tem um valor financeiro-económico. Se tudo se compra e tudo se vende, aqui não foi o caso.


Esta já longa contextualização serve, apenas e só, para demonstrar que a venda do nosso património arquitectónico, histórico, arqueológico, artístico, não sendo este uma coisa vendável, não sendo este objecto de troca como se se tratasse de uma qualquer mercadoria, pode e deve ser matéria de contestação cívica.


“O património não é uma velharia /…/ e a sua venda quando são bens do domínio público, pode criar uma situação de ruptura entre a sociedade, a cidadania e o poder”, afirmou-o recentemente Jorge Custódio em entrevista ao Correio do Ribatejo.


Para os que invocam a quantidade de “património” afeto ao domínio público, e que levantam a tónica da exiguidade de recursos para as necessidades exigidas, respondemos com a necessidade efectiva do envolvimento dos governantes, locais e centrais, na defesa da coisa pública. Para o envolvimento claro e sem exercícios de contorcionismo na defesa do Património enquanto legado que deixamos às gerações futuras e que será um instrumento económico, social e cultural-educativo fundamental para crescermos enquanto país, enquanto sociedade, enquanto comunidade.


Não temos de nos silenciar perante a sede de vender a todo o custo o nosso Património, sem qualquer reflexão e debate público sobre aquilo que se pode ou não pode vender, alugar, utilizar em regime de PPPs. Sobretudo, porque o que está em causa é a dignidade de um Estado que tem de valorizar o que é futuro. E o Património gerado ao longo de milhares de anos não pode nem deve ser passível de descarte num qualquer contexto macro ou micro económico que “exige” a venda de alguns anéis.


A defesa, a revitalização, a recuperação do nosso património passa pela definição de uma estratégia muito clara e discutida de forma alargada e que pode ter, por exemplo, a renovação urbanística, a revitalização do tecido urbano ou o ordenamento das florestas e a diminuição de impactes na agricultura como pretexto. E nesse quadro podem ser envolvidas entidades públicas e privadas, cidadãos e organizações cívicas, devendo ser um processo participado e enquadrado em objectivos que tenham populações e públicos como alvo principal e se considere que o Património de uma comunidade não é coisa embaraçosa a “aventar”, como se um brinquedo velho se tratasse.


O “Património” é um valor universal e não se pode privatizar! Mesmo que esse privatizar seja temporário.


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