Diana Pereira *
Tornar o museu num lugar de encontro privilegiado para os habitantes séniores que moram na área de proximidade da Fundação Calouste Gulbenkian – eis um objetivo dos serviços educativos do Museu e do Centro de Arte Moderna (CAM). Para esse fim, criou-se em 2017 o projeto Entre Vizinhos, onde se promovem encontros regulares entre os séniores da freguesia com as coleções. Os objetivos destes encontros são (1) o combate ao isolamento, fomentando o envelhecimento ativo; (2) a promoção da aprendizagem ao longo da vida; (3) o fortalecimento das relações entre a Fundação com as instituições locais. Neste artigo, iremos refletir sobre: (1) como o convívio e o bem-estar dos participantes e profissionais são fundamentais neste trabalho; (2) como a capacidade de adaptação de programas e estratégias de envolvimento é essencial para o projeto ter continuidade.
O Entre Vizinhos dá seguimento a um conjunto de visitas ao museu realizadas no âmbito de outro projeto: O Nosso Km² (2012-2016)[1]. Uma das diferenças do Entre Vizinhos é ter um enfoque pedagógico construtivista e participativo que torna a discussão de grupo e a promoção da opinião pessoal centrais na interpretação da obra de arte, e aposta no envolvimento em processos criativos como parte da aprendizagem. A pandemia reforçou a pertinência do projeto e a capacidade de adaptação dos participantes e profissionais. Em avaliações anuais auscultam-se interesses e, consoante a capacidade de resposta e recursos disponíveis, define-se o programa dos meses seguintes, adaptando-se estratégias de envolvimento. As avaliações têm demonstrado que as principais razões que motivam os participantes são a aprendizagem através da arte e o convívio. A continuidade do projeto contribui para o desenvolvimento de sentimentos de pertença, utilidade e valorização pessoal[2].
Conhecer o público, experimentar programas, adaptar estratégias
Em 2017 (ano piloto) definiram-se os parceiros locais: três centros de dia com um total de 24 participantes. Cada visita ao museu era seguida de uma oficina nos centros, com exercícios de exploração plástica. Os programas de visitas foram definidos segundo os interesses dos grupos. Inicialmente os participantes desconfiavam se o seu conhecimento era válido para interpretar as obras de arte, mas com o tempo, o diálogo entre todos começou a fluir e permitiu encontrar uma nova forma de estar no museu. Foram três processos paralelos que culminaram passados seis meses, num encontro entre todos, onde cada participante mediou uma obra de arte. Apesar de ter sido muito desafiante para os participantes, todos quiseram continuar envolvidos na temporada seguinte.
Na reunião de balanço, esse encontro final foi referido como o momento mais marcante. Apesar da maioria dos participantes estar diariamente acompanhado e não morar sozinho, “acabam por não ter oportunidade de conhecer pessoas novas”, segundo observou uma técnica. Assim, planeou-se um programa conjunto para os dois anos seguintes, no qual os centros reuniam frequentemente com as coleções e as sessões terminavam com um lanche. Além disso, o programa de visitas-oficinas passou a preparar o grupo para colaborar numa criação coletiva com uma artista convidada. O serviço educativo convidou Ana João Romana e Tânia Cardoso para trabalhar com o grupo, respetivamente em 2018 e 2019[3].
Findos os três anos, as avaliações revelaram que o projeto tinha: (1) fortalecido laços entre participantes, promovendo sentimentos de pertença, utilidade e bem-estar; (2) estimulado novas aprendizagens, com desafios intelectuais e criativos significativos; (3) contribuído para a desmistificação do que é a arte moderna e contemporânea.
Como garantir o bem-estar dos participantes?
Para alguns participantes, o encontro do ano piloto voltou a ser referido como o momento mais relevante, pois sentiram-se verdadeiramente responsabilizados e ativos no processo. Para a maioria, os processos artísticos foram as experiências mais estimulantes, mas para outros foram os momentos mais intimidantes. Por exemplo, na criação com Ana João Romana vários participantes temiam “não estar à altura” de trabalhar com uma artista. Uma em 22 pessoas desistiu e outra confessou que “queria desistir, mas não conseguia”, acrescentando: “as oficinas preparatórias deram-me confiança para trabalhar com a artista”. Durante a criação com Tânia Cardoso, quatro pessoas num total de quinze desistiram nos ensaios[4].
Façamos uma reflexão sobre o papel do mediador na promoção do bem-estar dos participantes. Se é habitual que haja desistências em trabalhos de grupo, o artista / mediador deve questionar-se se fez tudo para as evitar. Podemos aceitar uma desistência como algo expectável? Ou devemos garantir o bem-estar do participante (considerando que a sua motivação inicial é integrar um programa cultural no museu) e propor formas alternativas de envolvimento, com tarefas que vão para além da criação artística propriamente dita? Ao mediador, que conhece o grupo e promove a sua relação com o artista, é exigida esta sensibilidade. Neste contexto, ao artista exige-se flexibilidade da proposta artística.
A formação dos profissionais como garante do bem-estar de todos
Se a capacidade de gerir relações interpessoais é uma das competências mais exigentes em qualquer grupo, quando se trabalha com séniores há outras competências que o mediador deve considerar: a utilização da audiodescrição para integrar casos de pessoas com deficiência visual torna-se central, bem como ter consciência de que muitos dos participantes poderão estar a perder a audição ou capacidades cognitivas. Assim, é uma mais valia ter noções básicas sobre a demência, sem esquecer uma perspetiva existencial sobre o envelhecimento e, mais especificamente, a Abordagem Centrada na Pessoa.[5]
Quando se trabalha de forma continuada com séniores, estes, partilham frequentemente histórias pessoais que nos comovem. Mesmo que a proposta do mediador não integre questões do foro pessoal, as memórias evocadas a partir de determinado objeto ou conceito, estão muitas vezes associadas a vivências e histórias de carácter emocional. Idealmente, há conceitos e ferramentas da área da psicologia que podem ser úteis ao mediador, tais como a noção de empatia, o potencial terapêutico do recurso às reminiscências, a par de estratégias para melhorar a comunicação e gerir emoções. Em qualquer circunstância, tratar as pessoas com respeito, naturalidade e bom-senso é a chave para o mediador fazer uma gestão emocional do grupo e garantir que os objetivos iniciais não são postos em causa.
Para garantir o bem-estar do visitante sénior, o mediador deve sentir-se à vontade com as competências que lhe são exigidas, refletir se o seu perfil se coaduna com as necessidades específicas deste público (o que, de resto, deve acontecer relativamente a todos os públicos). Cabe às instituições culturais garantir a formação dos mediadores, apoiá-los na implementação dos programas e aferir que as estratégias respondem às necessidades dos participantes.
Adaptar estratégias ao formato digital e (novamente) ao presencial
Em 2020 previa-se a expansão do projeto, plano alterado com o início da pandemia. Rapidamente ficou claro que o projeto era ainda mais premente. Durante ano e meio, foram concebidas e testadas em direto 34 sessões digitais diferentes. Trabalhou-se com dois dos centros de dia do grupo original e com um novo grupo, com sessões que iam ao encontro da disciplina de Relações Humanas. As sessões foram dinamizadas por mediadores e artistas convidados que desafiaram os participantes a refletir através de propostas criativas[6].
O regresso às sessões presenciais coincidiu com o encerramento do edifício do CAM para obras. Sem espaço oficinal, desenhámos um programa centrado em visitas, como no ano piloto. A pedido do grupo, o programa tem como objetivo desenvolver competências de interpretação da obra de arte, dando aos participantes mais ferramentas de análise.
Durante cada visita, são propostos exercícios práticos no sentido de tomar consciência dos diferentes níveis de interpretação que ocorrem em simultâneo. Gradualmente os participantes começam a fazer análises mais questionadoras, atentas e críticas, e o diálogo reforça a visita como o momento de convívio. É interessante constatar que a ausência dos lanches não demoveu os participantes de virem ao museu[7]. Dito isto, conseguir fazer da visita o momento por excelência de convívio e a razão principal da vinda à Fundação tornou-se uma conquista das estratégias do Entre Vizinhos.
Sentimento de pertença e estados de bem-estar
Nestes cinco anos, realizaram-se 172 sessões, para um total de 67 pessoas, das quais 12 com presença regular. Contou-se com a colaboração de sete mediadores e dez artistas. Verificar que os participantes se juntam pelo prazer de conviver no Museu significa que este espaço se tornou num lugar de referência das suas geografias pessoais. Um lugar próximo de casa, que procuram nos tempos livres e que não está definido pelas regras do consumo, como a maior parte dos espaços públicos.
Para garantir o bem-estar, o número máximo de participantes por visita é agora de 12, acautelando problemas de audição; a escolha das obras considera questões de baixa visão; cada visita centra-se apenas numa obra, minorando estados de fadiga e aumentando a concentração; e a sequência das visitas antecipa questões de alterações de memória.
Finalmente, é importante frisar que alcançar o bem-estar não é um dado adquirido. O bem-estar é dinâmico, depende do estado de saúde das pessoas, e uma visita com sucesso depende também do bem-estar do mediador. É necessário estar continuamente atento às fronteiras do conforto, estimular e desafiar para uma aprendizagem participada e implicada, mas respeitar os limites de cada pessoa, a sua especificidade em cada momento e contexto.
Comments