Surgiu-me esta reflexão a partir de um artigo da autoria de Laura Raicovich, escritora e curadora, que desempenhou até ao início de 2018 as funções de presidente e directora executiva do Queens Museum (Nova Iorque). No seu texto - Why Libraries have a public spirit that most Museums lack -, questiona os motivos pelos quais as bibliotecas terão uma maior entrega ao serviço público, um maior empenho no trabalho junto da comunidade do que os museus e afirma que “uma faixa ampla da sociedade aparenta sentir-se mais bem acolhida numa biblioteca pública do que num museu.” Tempos houve em que as duas designações significavam conceitos praticamente sinónimos e faziam sentido pleno as criações iluministas das bibliotecas-museu ou dos museus-biblioteca, “templos” onde se reuniam colecções, fossem livros ou objectos de arte.
Há que, desde logo, fazer a ressalva da realidade norte-americana ser bem distinta da portuguesa, incluindo a museológica. Ainda assim, o debate parece-me pertinente e enquadrável na dimensão nacional. São dois tipos de instituições culturais com objectivos gerais, ou missão se quisermos, muito similares, mas com funções algo distintas, ainda que haja pontos de convergência e complementaridades. Falo em similitudes, sobretudo, se tiver em linha de conta um serviço público (independentemente da natureza das instituições) de cultura e a formação (ao longo da vida) dos públicos, tendo em vista a sua qualificação enquanto indivíduos e cidadãos.
Posto isto, questiona a autora, que reconhece uma evolução próxima de ambas as instituições, em que é que elas divergem e se residirá aí o motivo gerador de atracção do público, a pender de uma forma mais significativa, alegadamente, para as bibliotecas e não para os museus?
Ao focar-se no exemplo da Biblioteca Pública de Queens, a maior dos Estados Unidos da América (EUA), chega rapidamente a um dado que é elucidativo: possui um número substancial de ramificações, de pólos que tornam a instituição muito próxima da generalidade da população. Proximidade, portanto.
Segue para Brooklyn e a sua biblioteca pública. Nesta, responsáveis no seio da sua estrutura organizacional (com funções como curadora da programação de artes visuais e vice-presidente para as artes e cultura) ao programarem actividades para a comunidade participar, têm em conta isso mesmo, que esta espera que a biblioteca seja um repositório de ideias e de informação pública e não um espaço para especialistas. Os leitores não querem limitar-se a sê-lo, não querem ser apenas receptores de conhecimento transmitido por especialistas, querem exercer a sua cidadania, a sua liberdade, a sua criatividade, a partir da e na qual todos devem assumir o papel de co-autores.
Assim acontece, pois o serviço público prestado pela biblioteca, esta em particular mas provavelmente outras tantas, proporciona programas, actividades, estímulos nesse sentido, criam-se hábitos cuja consolidação gera exigência, debate, negociação, espírito crítico e responsabilidade (algo fundamental para o exercício da Liberdade, esse valor e bem maior). Aposta no serviço educativo, na programação cultural e cívica, portanto.
Ao olhar para a realidade nacional, fará sentido uma abordagem desta natureza? Mesmo dentro dos EUA esta não me parece consensual. Tem o mérito de originar debate, confronto, reflexão e isso é muito positivo (tal como as actividades estimulantes das bibliotecas de Queens ou Brooklyn!).
Temos exemplos americanos, infelizmente em menor escala em Portugal, de museus bastantes interventivos e focados na proximidade da comunidade, na componente educativa e na formação de públicos, mais do que isso, no estímulo à pro-actividade dos públicos no sentido de uma cidadania mais efectiva. Num museu estas componentes são essenciais, mas são-no igualmente a conservação e a segurança das colecções, a transmissão (também física, material) da herança cultural, aspectos que não raras vezes chocam com as demandas comunicacionais, de acessibilidade e de exposição, com os processos de democratização da instituição museal, que se devem continuar a desenvolver. Sublinho isto, não é isso que deve estar em causa. Poderá passar, como tenho referido a propósito de outros tópicos, por uma reorganização de prioridades e reforço de meios, mas nesta discussão em concreto parece-me ser tudo (ou quase) uma questão de bom senso, ponderação e compromisso.
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