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Escutar, dialogar, pensar: ferramentas para promover uma cidadania ativa e participativa


*David Felismino


Construir uma cidadania ativa e participativa


O Museu de Lisboa (EGEAC), espaço polinucleado dedicado à história da cidade que lhe dá o nome e às comunidades que nela habitaram e residem, desenvolve atividades para alunos de todos os ciclos de ensino, do pré-escolar ao ensino universitário, nos cinco lugares que o compõem: o Palácio Pimenta, o Teatro Romano, o Santo António, o Núcleo Arqueológico da Casa dos Bicos e o Torreão Poente da Praça do Comércio[1]. Desenvolve também, de forma regular, atividades nas escolas e transporta-se ainda para a rua, apropriando-se do espaço público para dar a conhecer o território e o património da cidade.


São várias as premissas conceptuais e linhas orientadoras que presidem ao Construir Lisboa[2], programa escolar, criado e implementado no ano letivo 2021-2022, nomeadamente, no que diz respeito à consonância com os programas das várias disciplinas humanísticas e científicas que estruturam os currículos, com as práticas pedagógicas dos docentes e com o estímulo ao desenvolvimento de competências-chave sociais e emocionais que devem sustentar a definição do perfil de um aluno à saída da escolaridade obrigatória.


Todavia, duas ideias ou desideratos foram fundamentais na elaboração deste programa, em permanente avaliação, transformação e (re)construção: por um lado, a promoção da democracia e dos valores a esta associados; por outro, o princípio da participação enquanto caminho e forma de cidadania. As democracias são saudáveis quando os indivíduos são cidadãos de pleno direito e participam ativamente na sua construção.


Espaço de democracia cultural e de democratização da cultura, entendemos o Museu de Lisboa como um lugar de inclusão, de diálogo e de experimentação, enquanto agente ativo e relevante na construção da cidade no presente e no futuro. Procuramos mobilizar conhecimentos, capacidades e atitudes que permitam uma efetiva ação humana. Promovemos valores e princípios, potenciando a construção de uma cidadania assente na justiça social e na equidade.


Educar para a liberdade, para a igualdade, para a responsabilidade, para o respeito do outro e o derrubar de todo o tipo de preconceitos são objetivos centrais e fundamentais das nossas atividades com as escolas, de forma a contribuir para a construção do bem comum e um futuro sustentável. No contexto da complexidade e da imprevisibilidade da sociedade atual, acreditamos que as finalidades aqui enunciadas, além de ganharem redobrado significado, devem ser trabalhadas nas escolas, transformando o Museu num importante parceiro na educação informal e não formal dos mais jovens, em articulação e colaboração com as demais comunidades educativas, sejam os docentes ou as famílias.


Que metodologias orientam as práticas adequadas aos objetivos da promoção de uma cidadania ativa? Como potenciar a participação? Como promover o pensamento crítico? Parece-nos fulcral ESCUTAR: proporcionar momentos de escuta, ouvindo opiniões, ativando a comunicação, criando-se, assim, lugares de fala para os alunos. Consideramos ainda essencial DIALOGAR, estimulando o pensamento crítico, o debate e a criatividade. Por fim, é fundamental PENSAR a partir da realidade presente para abordar o passado, facilitando a compreensão da atualidade através do entendimento de permanências, continuidades e ruturas, na cronologia e na diacronia.


1. Escutar: criar lugares de escuta e de fala


A valorização das opiniões, das dúvidas, das inquietudes, dos quotidianos e das necessidades específicas dos alunos é fundamental à construção de um espaço seguro e confortável em que os mesmos se sentem acolhidos e incluídos, permitindo criar e fortalecer conexões entre eles, com os mediadores e com os professores, potenciando-se, assim, momentos de diálogo que fomentam a liberdade de expressão e a gestão de potenciais tensões ideológicas e sociais. Os lugares de escuta e de fala criados contribuem para o desenvolvimento pessoal, a autonomia e a autoestima dos alunos, constituindo o ponto de partida para o estímulo do pensamento crítico, do pensamento criativo e do relacionamento interpessoal.


São várias as nossas atividades escolares que se desenvolvem a partir deste locus aberto de escuta. Deixo dois exemplos, necessariamente desenvolvidos de forma muito sumária por economia de espaço. Uma Cidade, Um Mundo é uma oficina-debate que se realiza no Palácio Pimenta. Pensada para o ensino secundário e profissional, problematiza o conceito de cidade e convida a os alunos a pensarem sobre o assunto a partir de Lisboa. A expressão de ideias é estimulada através de um jogo de suporte que aponta para alguns temas genéricos, mas centrais nas formas de organizar a vida na cidade. A partir destes, os alunos debatem opiniões para, coletivamente, pensarem o futuro da cidade.


Semelhante nos seus pressupostos é o projeto de continuidade Riscar a Cidade, atualmente a ser desenvolvido com o artista Rui Horta Pereira e uma turma de 9º ano do Agrupamento de Escolas de Alvalade (Lisboa). Utilizando a rua como espaço informal de aprendizagem e ampliando o espaço educativo construído da sala de aula para o espaço exterior, este projeto desenvolve-se em percursos por diversas zonas da cidade, durante os quais os alunos são desafiados a expressar o seu entendimento da cidade e a registá-lo num caderno de campo. Este caderno, sinónimo de liberdade de expressão do sentir e do pensar, pretende-se de descoberta individual, de experimentação livre, de ampliação do olhar a partir da rua.


Foto 1: Uma Cidade, Um Mundo. © José Avelar / Museu de Lisboa – EGEAC


2. Dialogar: estimular o debate crítico


Outra ferramenta essencial nas nossas atividades é o debate racional e lógico, estimulando a organização e exposição de ideias, a construção do discurso, a resolução de problemas e a tomada de decisão.


Eu tenho Voz!, oficina desenvolvida no Teatro Romano, dirigida a alunos do 3º ciclo e do secundário, tem por base a Antígona de Sófocles. Transpondo o diálogo em torno do conceito de liberdade deste texto clássico para a contemporaneidade, com o objetivo de promover uma intervenção consciente e democrática na vida coletiva e o respeito pela diferença, os alunos constroem, a partir de diversas dinâmicas teatrais, a defesa de uma causa em prol do bem comum.


Semelhante é Eu, Cidadão, visita-oficina do núcleo de Santo António, para turmas do 2º, 3º ciclos e secundário, que, a partir da vida e obra de Santo António, remete os alunos para um conjunto de valores universais e muitos dos desafios da sociedade contemporânea, como a crise ambiental, os conflitos armados, o acentuar das desigualdades sociais e da intolerância, entre outros. Identificados alguns destes problemas durante a visita, os alunos são desafiados a refletir e agir coletivamente na defesa de um eles, identificando causas e apresentando soluções.


Por fim, dirigida aos mais pequenos, do pré-escolar e do 1º ciclo, a visita-oficina Biodiversidade na Cidade fomenta, a partir da observação da biodiversidade animal e vegetal existente nos jardins do Palácio Pimenta, o diálogo em torno da urgência da preservação dos ecossistemas naturais face aos impactos da sua destruição nos nossos quotidianos, potenciando a defesa de práticas sustentáveis no contexto de cidades resilientes no futuro.


Foto 2: Eu tenho Voz!. © Museu de Lisboa – EGEAC


3. Pensar: do presente para o passado


Muitos dos exemplos aqui desenvolvidos remetem para a terceira ferramenta que nos parece fundamental: partir do presente para chegar ao passado, promovendo a compreensão da complexidade da realidade atual através do conhecimento do passado e do objeto histórico. Desta forma, são várias as nossas atividades que partem de debates societais contemporâneos, acolhendo assuntos por vezes denominados de “difíceis” ou “fraturantes”.


Refiro-me, entre muitos, à discriminação em razão do sexo, da orientação sexual e da identidade de género, ao racismo, à escravatura e às questões pós-coloniais, em suma, a todo o tipo de preconceitos, discriminação e exclusão. A abordagem destes temas, numa perspetiva diacrónica e, de certa forma, aqui entendida como forma de ativismo, sustenta e potencia o exercício da cidadania plena e ilustrada no presente.


A oficina C’Est Chic, desenvolvida no âmbito da exposição temporária Os Loucos Anos 20 em Lisboa (2022), dirigida ao pré-escolar e 1º ciclo, partindo das profundas transformações de costumes e de mentalidades que pautaram esta década, nomeadamente no que toca ao vestuário feminino e masculino, promovia o diálogo em torno de conceitos fundamentais como o sexo, a orientação sexual e a identidade de género.


Por fim, mas não menos importante, outra tema que perpassa todo o programa escolar do Museu é o da escravatura e do racismo. São várias as visitas e oficinas que afloram ou aprofundam estes temas, nomeadamente o percurso Lisboa da Escravatura, destinado aos 2º, 3º ciclos e secundário. Todas partilham dos mesmos objetivos: i) promover o conhecimento sobre a escravatura moderna em Lisboa, contextualizando-a na construção e evolução urbanística da cidade; ii) conferir visibilidade à comunidade africana e ao seu papel na cidade, no passado e no presente; iii) valorizar o património material e imaterial, associado à comunidade africana e à sua presença na cidade; iv) contribuir para o lugar de fala das diferentes comunidades de origem africana, migrantes e residentes atualmente na cidade e arredores.


Foto 3: Percurso sobre a escravatura em Lisboa. © José Avelar / Museu de Lisboa – EGEAC


Um ativador com força transformadora


ESCUTAR, DIALOGAR, PENSAR são três ferramentas de ação que sustentam o programa Construir Lisboa do Museu de Lisboa, com o objetivo de contribuir para o debate informado, educar contra todo o tipo de discriminação e exclusão e promover a democracia. Agentes transformadores, os mediadores do Museu assumem papéis de facilitadores, ativadores e estimuladores, apoiando a escola na formação dos alunos como pessoas autónomas, responsáveis, críticas e como cidadãos ativos. O meu agradecimento à Ana Margarida Campos, à Joana Olivença, à Maria João Marcelino, à Maria José Rodrigues, à Paula Ribeiro e ao Paulo Cuiça, sem quem nada disto seria possível.


Foto 4: Atividade desenvolvida com alunos do 4º ano, na Câmara Municipal de Lisboa, 10 de maio 2022.

© Nuno Correia/DMCom/CML


[1] Este último encerrado para obras desde março 2020. [2] A edição 2022-2023, encontra-se disponível on-line aqui: https://museudelisboa.pt/application/files/7116/5910/0135/PROGRAMA_ESCOLAR_2022_WEB.pdf (consultado em 26/01/23)


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David Felismino

Licenciado em História – Ramo científico e Pós-graduado em História Moderna pela Faculdade de Ciências e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É, ainda, Pós-graduado em Empreendedorismo e Estudos da Cultura, na variante Património e Projetos Culturais pelo ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. Desempenhou funções como investigador e curador no Instituto de Ciências Sociais, na Casa Fronteira e Alorna, no Museu Geológico, no Museu Nacional de História Natural e da Ciência e no Museu da Saúde, tendo sido responsável pelo desenho do projeto museológico deste último. Desde janeiro de 2020, é Diretor-adjunto e Coordenador do Serviço Educativo do Museu de Lisboa (EGEAC). Integra a Direção da Comissão Nacional Portuguesa do ICOM, na qualidade de Secretário, para o triénio 2020-2023.


O autor não utiliza o acordo ortográfico.

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