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Catorze mulheres na museologia portuguesa



Quem foram as pessoas que criaram, dirigiram e deram vida aos museus que hoje conhecemos em Portugal? Quais as suas proveniências sociais e familiares? Onde viveram? Que atividades desempenharam? Que relações se estabeleceram entre elas? Que coleções formaram, estudaram ou conservaram? Que influências são detetáveis ao longo do tempo? Em que causas cívicas e patrimoniais se empenharam? Que projetos ficaram por concretizar?


A estas e muitas outras perguntas tenta responder o Dicionário Quem é Quem na Museologia Portuguesa, uma iniciativa do Instituto de História de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, cuja segunda edição, revista e ampliada, foi apresentada em 18 de maio passado. Este monumental livro digital, de acesso livre, com 636 páginas e 189 entradas, abrange cerca de 200 anos de arco cronológico, do século XVIII ao início dos anos 1960. O dicionário onomástico percorre as vidas de 175 homens e 14 mulheres, cuja entrega aos museus, ao património, ao colecionismo, à educação, à conservação, ao inventário, à investigação, às comunidades, ao território, ao mundo rural, às cidades, ao serviço público, fez dos museus portugueses aquilo que hoje são. A partir de agora, torna-se possível descodificar estas vidas e entender os contributos que estas pessoas deram para a construção da história dos museus em Portugal.


Coordenado por Raquel Henriques da Silva, Emília Ferreira, Joana d’Oliva Monteiro e Elisabete Pereira, o Dicionário Quem é Quem na Museologia Portuguesa é um projeto coletivo, colaborativo e participativo. As suas organizadoras prepararam a estrutura e o conceito e tomaram decisões de enquadramento tecnológico e institucional, deixando à chamada aberta de trabalhos o preenchimento dos conteúdos de cada um dos volumes, agora reunidos numa única publicação. O Dicionário é democrático, horizontal e reticular. É um projeto entre pares, cientificamente revisto por colegas, em que as redes de colaboração se foram estabelecendo naturalmente.


O âmbito nacional está refletido na cobertura do país, o território continental de norte a sul e do litoral ao interior, e os dois arquipélagos atlânticos, iluminando figuras e personalidades caídas no esquecimento na sua própria terra ou desconhecidas a nível nacional. A abrangência geográfica estende-se ao Brasil, não só à rica história partilhada do século XVIII e princípio do século XIX, mas a cruzamentos e intercâmbios ao longo do século XX. O alcance cronológico mencionado, desde os fundamentos do colecionismo, dos gabinetes e dos protomuseus do século XVIII até aos anos de 1960, toma como baliza mais próxima a biografia de Adília Alarcão que afortunadamente abre o Dicionário. A diversidade disciplinar de percursos e de escolhas académicas e profissionais das personalidades retratadas nesta obra espelha-se consequentemente na diversidade tipológica dos museus a que estiveram ligadas.


Muitos nomes conhecidos e relevantes da História da Museologia portuguesa poderiam ser aqui invocados e constam do Dicionário: frei Manuel do Cenáculo, João Allen, Dom Fernando II, Estácio da Veiga, José Leite de Vasconcelos, José de Figueiredo, Joaquim de Vasconcelos, João Couto, Ernesto Veiga de Oliveira ou Diogo de Macedo. Ou aqueles que porventura perduraram menos na memória e agora são resgatados: António José Nunes da Glória, José Rafael Rodrigues, Gabriel Victor do Monte Pereira, Marciano Azuaga, André Monteiro da Cruz, Alfredo Luís Campos, Cristiano Augusto da Silva, e tantos outros para descobrir.


Entre tantas possibilidades, detenho-me nas 14 mulheres biografadas. São apenas 14 no conjunto das 189 entradas e por isso mesmo é possível listar os seus nomes e lembrar alguns aspetos das suas vidas dedicadas aos museus: Adília Alarcão, Etheline Rosa, Irisalva Moita, Julieta Ferrão, Madalena Cabral, Madalena Perdigão, Maria Alice Beaumont, Maria Alice Tavares Chicó, Maria de Lourdes Bártholo, Maria Helena Coimbra, Maria Helena Mendes Pinto, Maria José de Mendonça, Maria José Taxinha e Maria Madalena de Cagigal e Silva.


Nascidas entre 1899 (Julieta Ferrão) e 1933 (Adília Alarcão), mas dominantemente nos anos 1920, estas mulheres foram diretoras, conservadoras, restauradoras, investigadoras, educadoras, estudiosas e especialistas de coleções muito diversificadas, da arqueologia à pintura, à gravura, à tapeçaria, ao mobiliário, às artes indo-portuguesas e às artes contemporâneas do seu tempo.


Julieta Ferrão terá sido, segundo Sandra Leandro, a primeira mulher a dirigir um museu em Portugal, o Museu Bordalo Pinheiro. Inaugurado em 1916, nele trabalhou desde o início, tornando-se diretora-conservadora em 1924 e no seu anexo viria mesmo a falecer em 1974. Foi também a primeira “1ª conservadora” dos Museus Municipais de Lisboa em 1948.


Foi aos museus de Lisboa e em particular ao Museu da Cidade que Irisalva Moita dedicou a maioria da sua vida profissional. Pensando a cidade como um todo, foi responsável, segundo Isabel Sargento, pela primeira ação arqueológica de âmbito urbano, em 1960, no decurso das obras para a construção da estação de metro do Rossio. Investigadora, patrimonialista, conservadora de museu, autora de catálogos e de exposições temporárias memoráveis, Irisalva Moita foi uma referência não só para a Museologia da cidade de Lisboa, mas um farol para os museus municipais na sua longa carreira. Tive o privilégio de conhecer a Dra. Irisalva, nos primeiros anos da minha atividade no Museu Municipal de Vila Franca de Xira e curiosamente conhecemo-nos fora de Portugal, na conferência internacional do ICOM, em Haia, em 1989, quando a encontrei no Comité dos Museus Regionais. Foi o início de uma troca muito frutuosa de ideias, sobretudo em torno do papel dos museus municipais e dos seus técnicos, de aprendizagem e de amizade.


Tive também a sorte de conhecer outra das biografadas, Maria Helena Coimbra, uma incansável trabalhadora do serviço público, responsável por vários museus, como o Museu Malhoa e o Museu de Arte Popular, ou pela programação de outros, como o Museu Abade de Baçal a partir dos serviços centrais do então jovem Instituto Português de Museus, como lembra Virgínia Gomes. Já aposentada, integrámos no início dos anos 2000 uma viagem de estudo a museus de Berlim, em que a sua energia contagiante, o seu humor e os seus comentários certeiros às exposições visitadas constituem uma das memórias mais vivas que guardo dessa jornada.


Com Maria Alice Beaumont, partilhámos um amigo improvável, o museólogo sueco Per Uno Ägren, que Maria Alice, enquanto Diretora do Museu Nacional de Arte Antiga acolheu neste museu, aquando da Missão UNESCO, liderada por Per-Uno em 1976 e em 1979, na sequência de um pedido do Secretário de Estado da Cultura, David Mourão Ferreira, no pós-25 de abril. Maria Alice, conservadora de museu, diretora do MNAA e historiadora de arte, e Per Uno, diretor do Museu Regional de Vasterbotten na Suécia e precursor da Museologia comunitária, tornaram-se amigos para a vida. Se refiro este aspeto, é porque é talvez um dos detalhes menos conhecido da vida desta mulher contida, forte, com uma rara capacidade de escutar, como é referido por Sandra Leandro nesta entrada do Dicionário.


Força e liderança foi o que não faltou à sua antecessora na direção do Museu Nacional de Arte Antiga, Maria José de Mendonça, uma figura mítica da Museologia portuguesa que marcou os que com ela contactaram, o que já não foi o meu caso. Conservadora e diretora, elegeu a conservação e as reservas como as suas principais preocupações, preconizando quase como utopia a possibilidade de as reservas do MNAA serem visitáveis, segundo Teresa Pacheco Pereira.


É impossível falar de Maria José de Mendonça sem referir a outra Maria José, Maria José Taxinha, que dirigiu a oficina de tapeçaria do Museu de Arte Antiga, uma referência internacional, tendo sido pioneira na conceção de cursos de formação profissional, os primeiros em conservação e restauro, conforme refere André Remígio.


À conservação e restauro, à arqueologia e à Museologia tem Adília Alarcão dedicado e continua a dedicar uma vida de trabalho baseada no Museu de Conímbriga de que foi diretora e que transformou num centro de conhecimento da conservação e restauro em Portugal, com uma visão holística da Museologia, como salienta Raquel Henriques da Silva. Esta visão contagiou gerações de profissionais, entre os quais tenho a sorte de me incluir. A sua sabedoria e a sua disponibilidade para comentar e debater os projetos museológicos da contemporaneidade mantêm-se até ao presente.


Cada uma destas mulheres teve uma carreira única, dedicou-se a variados patrimónios, atuou em diferentes áreas do país, embora predominantemente na capital, e assumiu diversificados e complementares papéis profissionais: conservadoras, educadoras, investigadoras e, sobretudo, diretoras de museus públicos, quer nacionais, quer municipais.


O acesso à educação superior e à cultura está presente nas personalidades biografadas, na decorrência do meio familiar burguês a que pertenciam. Desta circunstância emana um aspeto comum que une grande parte destas biografias, a formação internacional, fosse em visitas de estudo a centros de referência na Europa e nos Estados Unidos, fosse através da frequência de cursos que contribuíram para a excelência da sua atividade nos museus.


Maria José de Mendonça visitou, em 1934, museus e bibliotecas de arte em Paris Londres, Bruges, Gante, Antuérpia e Bruxelas. Maria José Taxinha, cujo interesse pela tapeçaria despoleta numa visita, em 1949, a uma exposição sobre a tapeçaria francesa no Museu Nacional de Arte Moderna de Paris, fez posteriormente formação contínua em Paris, em Lyon, em Estocolmo e em visitas por toda a Europa. Madalena Cabral visitou, nos anos de 1950, museus europeus e norte-americanos. Adília Alarcão, especializou-se em conservação no Instituto de Arqueologia da Universidade de Londres no início dos anos 1960, mais tarde visitando museus nos Estados Unidos que muito influenciaram a sua abordagem pragmática à museografia. Maria Helena Mendes Pinto, no dizer de José Luís Porfírio, “uma conservadora globetrotter”, foi de Coxim a Jacarta, de Paris a Tóquio, entre muitos outros lugares, na senda das artes indo-portuguesas. Etheline Rosas transportou para a Fundação de Serralves a sua naturalidade e as experiências profissionais brasileiras. Maria Helena Coimbra foi bolseira na Suécia e viveu sete anos nos Estados Unidos, de novo como bolseira e docente em museus e universidades.


O segundo traço comum a muitas destas mulheres, se não mesmo a todas, é a combatividade, a determinação, a persistência e a capacidade de lutar pelos museus onde exerceram a sua atividade profissional e pelo património à sua guarda. Enfrentando os constrangimentos das administrações públicas e/ou o desinteresse dos poderes políticos, são conhecidas e recordadas no Dicionário algumas das lutas em que se envolveram.


Maria José de Mendonça, caracterizada como “uma lutadora que enfrentava as hierarquias ou os colegas para defender o que achava justo”, lutou em particular pela conquista de recursos humanos para o MNAA. De Madalena Cabral é conhecido o empenho na construção do serviço de educação do mesmo museu. Adília Alarcão tem sido, e continua a ser, uma voz reconhecida não só nos museus de que foi diretora, mas no plano nacional em defesa dos museus, do património e dos seus profissionais. Maria Madalena de Cagigal e Silva enfrentou no Museu de Arte Popular os constrangimentos e as características dos recursos humanos existentes. Madalena Azeredo Perdigão lutou para impor o ACARTE - Serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, antecipando um paradigma dos nossos dias: “vamos correr riscos, vamos cometer erros”. Finalmente, Maria de Lourdes Bártholo tentou sem sucesso sensibilizar a tutela para a urgência de obras de conservação e ampliação no Museu Nacional de Arte Contemporânea / Museu do Chiado.


O ambiente cultural, a sólida formação, as competências técnicas, o acesso ao panorama internacional e traços de caráter podem ajudar a explicar a relevância que estas profissionais de museu atingiram em contextos laborais do século XX que, embora feminizados, deixavam recorrentemente aos homens a ocupação dos lugares de autoridade.


Aos combates destas mulheres devemos muito do que são hoje os nossos museus. Não é demais recordá-las, homenagear a sua memória, prosseguindo com persistência as lutas desencadeadas em diferentes tempos históricos, e nunca findas, em prol dos museus portugueses.


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2ª EDIÇÃO (2022) – EDIÇÃO REVISTA E AMPLIADA Dicionário Quem é Quem na Museologia Portuguesa

Coordenação Científica e Editorial: Raquel Henriques da Silva (IHA/NOVA FCSH), Emília Ferreira (MNAC; IHA/NOVA FCSH), Joana d’Oliva Monteiro (IHA/NOVA FCSH), Elisabete Pereira (IHC/NOVA FCSH)

Edição: Instituto de História da Arte, FCSH, Universidade NOVA de Lisboa

ISBN: 978-989-54405-5-9


A autora utiliza o Acordo Ortográfico.



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