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As “dentaduras” da Tia Ana…



Já lá vão algumas décadas, a tia Ana regozijou-se pela dentadura nova que um dentista tinha aprimorado, não só no conforto que lhe propiciava esse “adereço indispensável”, como lhe chamava, mas principalmente pela estética que passou a mostrar sempre que abria a boca: deixou de ter intervalos irregulares entre os dentes e até o tamanho deles se tornou mais homogéneo. “Até o riso ficou mais bonito”.


Recomendou a clínica dentária a algumas amigas, surpreendidas com o resultado que admiraram. Por isso, logo que necessário, também elas substituíram as antigas pelas novas dentaduras. Conheci as amigas da tia Ana antes das intervenções e, por isso, com o passar do tempo fui comparando e reconhecendo as mesmas amigas já com o novo desenho dentário. Fui tendo a sensação de que passei a ter 3 ou 4 tias sempre que abriam a boca, tão perfeitas eram as cópias dentárias.


Reflito sobre esta “historieta verdadeira” sempre que olho para as intervenções contemporâneas no Património e na Paisagem.


Já lá vai o tempo em que Alexandre Herculano, no século XIX, questionava e respondia: “Que quereis que se faça aos nossos monumentos? Que se deixem em paz…”


Já lá vai o tempo de se deixar tudo “em paz”, quieto, mas é sempre oportuno refletir sobre tudo que contribui para a construção permanente da paisagem identitária portuguesa que temos no século XXI.


Reflito sobre esta “historieta” quando olho para as intervenções contemporâneas em sítios classificados em Diário da República; mas também reflito sobre esta “historieta” quando olho para as intervenções contemporâneas em espaços urbanos que não estão classificados em Diário da República, mas que guardam memórias locais.


Reflito sobre esta “historieta” quando olho para intervenções contemporâneas feitas para melhoria de infraestruturas e que, porque se assumem como sinónimo de progresso, a tudo se sobrepõem sem perceberem que a construção da paisagem que os confronta, urbana ou rural, resulta do trabalho milenar do homem, igual ao atual, respeitável, com sentimentos, gostos, saberes, conhecimentos e compromissos.


A ligeireza da intervenção na dentadura da tia Ana e nas das suas amigas, tornando-as todas iguais, não é método para ser usado na abordagem atual, quer seja nos planos de obras, nos projetos ou nas intenções aplicadas à Paisagem Cultural Identitária.


Intervir numa estrada antiga em Trás os Montes, mesmo que seja para melhorar a infraestrutura da localidade, deve e pode merecer técnicas de intervenção adequadas e diferentes de uma outra no Alentejo ou no Algarve, no interior ou no litoral. As técnicas e as tecnologias construtivas antigas podem ter sido as mesmas em ambas as estradas, até os objetivos estratégicos para os traçados das estradas podem ter sido semelhantes, mas o reconhecimento pelas populações pode ser diferente, para além dos distintos significados que o tempo lhes acrescentou e da marca de memória que representa para cada um dos sítios.


Já agora, convinha refletir, também, sobre a moda das intervenções contemporâneas em espaços públicos e em praças públicas.


Será que vamos continuar a aplicar em 2020 a mesma solução que a clínica dentária usou para a tia Ana e amigas? Tudo igual em todo o lado, com o argumento de que se corrigem os defeitos identitários de cada um dos sítios?


Se a inteligência nos é comum, a razão, que faz de nós seres racionais, …., tem por fim prescrever o que devemos fazer e não fazer. Tal foi escrito por Marco Aurélio, no século II.

 

O autor utiliza o Acordo Ortográfico.


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