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Acreditar na Cultura para combater o Medo


Parece-me que ainda não percebemos… mas alguma coisa mudou no Mundo. No nosso, no dos vizinhos do lado, no pedaço de mundo que pensávamos global, mas que afinal é local, como sempre foi quando falamos de pandemias que se alastraram pelo mundo como a Peste Negra ou outra qualquer. Porque desde sempre o homem move-se. E, apesar de tudo, ele move-se…


E se houve alguém que sofreu e sofre neste quadro de encerramento sobre cada um de nós, foram os criadores de palco, de rua, de garagem. Foi o mundo da cultura, do património e da arte, estando a sofrer um dos maiores cataclismos (silenciosos) de que há memória. E têm à sua frente um desafio que ninguém alguma vez pensaria que se iria colocar, que ninguém alguma vez imaginou, muito menos ser possível neste já entrado século XXI. Um beco sem saída interpôs-se no caminho de nós todos, mas em particular de todos aqueles que vivem nos palcos da arte, do espectáculo e do património.


Neste paradigma sem resposta, às respostas “oficiais” que se exigiam, faltou audácia, faltou democraticidade na falta duma cobertura abrangente e eficaz, uma intervenção revolucionária que não deixasse ninguém de fora e soubesse incentivar a criação de novas respostas, novos paradigmas, novos mundos no universo da Cultura.


A rua, um espaço privilegiado por natureza para o acto de MOSTRAR é, ainda hoje, um lugar perigoso. Sair à rua pode significar não saber se no regresso a casa somos, ou não, veículo de um vírus que nos encerrou e encerra entre quatro paredes. Sair à rua pode significar carregar o estigma de ser um contaminado e de ter transportado um vírus que levará não sabemos quantas pessoas ao Hospital.


Perante este estado de coisas, procuramos improvisar. Nestes tempos de clausura, procurámos adaptar à nova realidade as nossas vivências pessoais, sociais, profissionais. Vivemos improvisando com o teletrabalho, no apoio aos filhos em idade escolar; profissionalizamo-nos em apps, zooms e outras milagrosas receitas. A partir de casa fizemos, fazemos, espectáculos, saraus, declamações, exposições. Visitamos museus, participámos em visitas guiadas ao campo; realizaram-se seminários, colóquios, workshops.


Numa primeira abordagem procurámos não questionar. Adaptámo-nos ao que o novo mundo nos obrigou, obriga e continuará a obrigar.


Mas será este improviso a resposta à grande mudança de paradigma a que estamos a assistir e que deveria mudar profundamente a forma de olharmos e de nos relacionarmos com o mundo em que vivemos?


Não, obviamente que não. Até porque, a grande maioria dos trabalhadores da Cultura, dos fazedores de sonhos, dos contadores de vidas, não vive este admirável mundo novo acedendo a recursos económicos, financeiros, sociais como todos desejaríamos. Não! A grande maioria não vive! Sobrevive!


Esta pandemia assustadora transformou-nos em coisa, em objecto 3D, em imagem, em holograma. Fez desaparecer de um dia para o outro as sensações, os calores, os odores, os arrepios, a emoção de estar a assistir “ao vivo” ao espectáculo da vida. Aos espectáculos das nossas vidas.


Mas, apesar de tudo aquilo que nos cerca, apesar do esvaziamento cada vez maior da Cultura na Sociedade em que vivemos (a diminuição do tempo da disciplina História no Secundário, depois do que já se tinha passado com a Filosofia, é bem a prova disso) assim como a arte precisa da rua, nós precisamos da Arte. Do espaço de mostra das galerias de exposição. Dos palcos, dos camarins e das plateias. Dos festivais em anfiteatros não artificiais ou em plateaux onde a paisagem é cenário natural. Dos Museus, dos Cinemas, dos Livros, do Teatro…


E se precisamos da Arte e da Cultura, com o medo de entremeio e perante todas as dúvidas que continuam a abater-se sobre nós quanto à duração deste terrível problema que se abateu sobre nós, também os artistas têm de sobreviver, de se alimentar, para poderem criar, para nos alimentar o espírito.


Como tal, é preciso o poder público saber reinventar o financiamento das artes. De todas! Da dança, do teatro, do cinema, da música. É preciso pensar que as novas fórmulas de educação e de formação das escolas e do ensino informal devem ter nas Artes e na Cultura em geral um suporte objectivo para a criação de conteúdos curriculares e reavaliação dos métodos de ensino. É preciso mostrar que cada praceta, cada parque, cada espaço público são palcos da nossa vida e das vidas do espectáculo. É preciso que o artista, o cidadão, o político, o militar, as instituições olhem a Arte como a seiva essencial para a construção de uma sociedade inclusiva, solidária, interventiva.


Através da Arte, do espectáculo, das emoções que nos trazem os romances, os poemas, as performances de dança, podemos ajudar a fazer uma outra sociedade que saiba olhar o medo de estarmos na rua, como vacina contra o estarmos em casa.


É urgente olharmos a Cultura como o espaço de criação de Alegria e do não Medo e, para isso, precisamos de salvar os trabalhadores da Cultura! Hoje!


1 Comment


Bruno Resende
Bruno Resende
Jul 21, 2021

O saltimbanco foi o primeiro a sentir o choque. Não do medo de um vírus. O medo de que tudo se dissolvera num tempo contínuo de desapego e apatia, longe estavam os públicos dessas inércias ao trilhar os gigantescos eventos de Serpa, Elvas, Santa Maria da Feira, e teoricamente, cada local, bastando o querer de "dentro", e não a imposição de fora. Assim milhares visitavam o património que viajava no tempo e os levava ao mundo onírico da história vivida, e aos deleites da liberdade absoluta, a de ver ou não, a de seguir caminho, o que fazia com que entrar em salas de espetáculo se tornasse num contexto impróprio ao ancestral êxtase popular. Se em 2019 dirigia um grupo…


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