Com uma história de expressiva expansão no pós 25 de abril, as associações culturais em Portugal são celebradas como o triunfo da democracia que cria o ambiente propício à realização de vontades sociais e cidadãs e que se reflete no surgimento de um vasto movimento associativo. Porém, a história deste movimento associativo em Portugal ainda está por construir em pormenor. Fora alguns estudos de caso e a organização de listas e tipologias panorâmicas sobre o tema, o conhecimento profundo das suas perceções de património e dos seus feitos não é ainda acessível, por falta de produção sistémica de documentação auto-reflexiva, justamente entre aqueles que apelam para a salvaguarda patrimonial. Neste texto falamos dos desafios teóricos e práticos da produção deste tipo de material, e lembramos a importância de desenvolver projetos neste sentido. Trata-se de um convite à reflexão, em prol de um ponderação que permita uma troca maior entre as associações, pesquisadores, gestores e cidadãos.
Enquanto caracterização institucional, as associações são a reunião de pessoas individuais e (ou) coletivas, um agrupamento de entidades a partir de pressupostos comuns para a prossecução de determinado fim. Via de regra, as associações são iniciativas organizada a partir do trabalho voluntário e individual, procurando resolver questões de âmbito público de maneira coletiva. A sua importância é revelada na apresentação e organização de desejos referentes ao âmbito comum, criando laços sociais comunitários e promovendo a aquisição de conhecimentos a partir da partilha do saber, com uma ação primeiro voltada para o grupo e depois para agentes externos. O principal elemento para diferenciar o nível de seriedade entre uma reunião de pessoas e uma associação está na aquisição de personalidade jurídica e de tudo o que ela envolve; entre outros, trata-se de uma mais rigorosa especificação de bens e serviços e de uma sede, mas, acima de tudo, a existência legal da associação responde ao desejo da permanência, à vontade de reconhecimento e da concordância da sua própria relevância. Entretanto, se a constituição jurídica cria uma existência legal, falta muitas vezes a consciência histórica da sua presença social como entidade dotada (e potenciadora) de determinadas narrativas que importa, também, proteger.
Com efeito, apesar da importância das associações culturais em Portugal para a defesa do património e até para a definição de políticas públicas, o trabalho concretizado e os seus frutos podem passar despercebidos pela sociedade civil, já que não há uma real compreensão do esforço empreendido e uma medição correta do seu impacto no tempo. As informações disponíveis sobre as associações não apresentam dados que permitam a análise da sua história ao longo do tempo. Mesmo a quantificação de dados estatísticos depende de informações externas, como as listagem de associações presentes nos Encontros Nacionais de Associações de Defesa do Património Cultural e Natural. As histórias das associações e as obras que elas produzem estão, muitas vezes, por desocultar. Para além de trabalhos académicos é necessário que as próprias associações tornem pública a produção documental que dê conta aos seus sócios e diversos stakeholders da obra realizada. Sem um registo do seu labor não é possível perceber a sua historicidade, quantificar e qualificar qual o património protegido ou que se espera defender; perceber como tal tem sido feito e até, eventualmente, permitir que a própria associação corrija distorções no seu propósito. É mister conhecer os agentes culturais, esses obreiros da história da cultura, sem os quais ela não vive, mas que, invisíveis, não podem ver o seu esforço devidamente reconhecido. Não se trata apenas da produção de relatórios para agências de fomento ou de instituições que apoiem esses empreendimentos, mas sim de produção documental e sistémica sobre as atividades realizadas para todos os interessados. A função e os valores das associações também merecem ser devidamente reconhecidos.
Os problemas para o desenvolvimento de tal esforço são tanto teóricos quanto práticos. Na ordem das questões teóricas encontra-se a completa perceção dos objetivos de curto, médio e longo prazo da associação; assim como, também, dos problemas enfrentados, as lacunas a serem preenchidas e um diagnóstico do que já está feito e do que ainda está por ser realizado. No campo das questões práticas está o tipo de mão-de-obra empregada nas associações, normalmente voluntária e instável. — um problema que se reflete nas dificuldades financeiras enfrentadas por muitas delas que, atuando de forma não mercantil, raramente subsistem por conta própria. Um outro campo de problemas está nos materiais quotidianos produzidos e na sua conservação em arquivo próprio. Fora as atas de assembleias e relatórios, raramente se torna notório, quantificado e identificado o quando, o como e o porquê do que se fez (e do que não foi feito). Poucas vezes se fornecem dados que permitam a pesquisadores e a gestores a análise, a comparação e o conhecimento a fundo do trabalho realizado pelas associações, bem como o seu funcionamento.
Uma associação bem organizada poderia ter como fontes documentais os estatutos, as atas, os boletins associativos ou órgãos de comunicação internos e, por exemplo, o clipping (artigos e reportagens veiculados na comunicação social) e o registo da participação de membros e pesquisadores em atas de congressos. Mas tomemos como exemplo, a título demonstrativo, o MPMP Património Musical Vivo, fundado em 2009, com atividade pública desde 2010, que tem como objetivo salvaguardar e difundir a música erudita lusófona em âmbito nacional e internacional, numa perspetiva de longo prazo e, frequentemente, multidisciplinar, produzindo tanto edições como espetáculos. Nos seus nove anos de idade, em 2018, não existia ainda a mera catalogação dos eventos já realizados. Prestes a completar uma década, era desejo desta associação dar a conhecer ao público e aos seus sócios a dimensão das realizações desta entidade. No caso de uma estrutura que se dedica à redescoberta de património musical histórico, tantas vezes promovendo a estreia moderna de compositores e títulos esquecidos há décadas ou séculos, e promovendo também a estreia absoluta de compositores vivos, isto é, estimulando a criação contemporânea, a ausência de um registo que, com clareza, de forma sistémica e uniformizada, permitisse coligir estes dados era bastante compreensível numa estrutura que começou de forma amadora, mas foi-se revelando crítica à medida que as concretizações se avolumaram e, sobretudo, no momento em que, finalmente, a estrutura logrou profissionalizar-se.
O que se imaginou como um trabalho simples de quantificação de dados revelou-se muito mais complexo, a começar pelo problema “número um” de todo o historiador: fontes. Os registos dos eventos realizados encontravam-se dispersos (e díspares), tanto na organização quanto no seu formato. Os programas de sala foram guardados por vontades individuais, da mesma forma que os registos em fotografia e vídeo e as notícias na imprensa. Não havia sede real nos primeiros anos de atividade. Logo, o primeiro passo foi a reunião da documentação possível e a organização de um arquivo próprio, com as dificuldades já esperadas: conflito de datas, substituição de artistas por motivos diversos, enfim alterações de programa de última hora (em conflito com o que ficou impresso, sem que tenha sido possível fazer errata). Um outro ponto importante é que, quando a associação começou, as redes sociais não tinham a mesma importância que foram adquirindo com o passar do tempo; assim, alguns dados foram perdidos por não armazenamento. A divulgação de tal informação serve ela mesma para a difusão e conhecimento do património a ser salvaguardado, já que no caso da música é necessário que, por exemplo, as partituras sejam mais tocadas para serem mais conhecidas. A música, arte dependente do tempo, entidade sempre transitória, sofre desta particularidade: a partitura, quando existe, pode ser protegida, transcrita, ganhar novas edições, mas a música só pode ser apreciada quando tocada. Partituras, programas de sala, gravações áudio e (ou) vídeo, clipping (notícias e crítica de imprensa) são algumas das muitas fontes úteis e necessárias à preservação tanto do património a que a associação se dedica como ao conhecimento dela própria como estrutura mobilizadora
A questão que se coloca é a de como promover o exercício de tal atividade e de quais os recursos que podem ser disponibilizados para tanto. É preciso que se perceba que, mais do que exercício de marketing, conhecer a história destas entidades deve ser um desejo de todos os que se interessam pela defesa patrimonial. O associativismo cultural em Portugal teve um papel essencial na proteção patrimonial no pós 25 de abril, sobretudo na instituição de políticas públicas portuguesas, e a sua história precisa de ser aprofundada para serem melhor conhecidas as suas boas práticas e, sobretudo, porque é nela que por vezes se (re)vive o património a preservar.
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