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Direito de Autor: como melhorar o acesso ao património através dos direitos dos utilizadores


A Acesso Cultura disponibiliza, há vários anos, um curso sobre Direito de Autor e Domínio Público, dirigido aos agentes culturais que se dedicam a fazer chegar ao público património de natureza literária e artística e que, consequentemente, necessitam de ter conhecimento sobre a legislação de direito de autor e direitos conexos para gerirem de forma adequada o acesso e utilização, pela comunidade, do acervo de que dispõem.


A organização desta formação surgiu na sequência do reconhecimento de que a complexidade (e, por vezes, obscuridade) da lei de direito de autor e a falta de compreensão da mesma, por parte dos profissionais da cultura, tem um efeito dissuasor na abertura dos acervos culturais portugueses ao público em geral.


Com efeito, uma grande parte das instituições culturais portuguesas impedem, por um lado, o acesso, utilização e reutilização de reproduções (e.g. fotografias) de obras e materiais caídos no domínio público e, por outro, não dão aos utilizadores a possibilidade de exercerem os seus direitos em relação a obras e materiais ainda protegidas por direito de autor e direitos conexos, ainda que tais utilizações sejam requisitadas às instituições ao abrigo de limites e excepções a tais direitos (e.g. utilizações livres para fins educativos ou de investigação).


Os museus, os arquivos, as bibliotecas e demais instituições culturais partilham o objectivo comum de preservar, organizar e possibilitar o acesso ao património cultural e produção científica. As obras, documentos e demais materiais conservados por estas instituições são, na sua maioria, susceptíveis de serem legalmente protegidos por direitos exclusivos, ao abrigo da legislação de direito de autor e de direitos conexos. Isso significa que, enquanto durar tal protecção legal, a utilização pública desse património cultural e científico depende, em regra, da autorização do indivíduo ou instituição detentora de tais direitos.


Na maioria das vezes, as instituições culturais, não obstante serem proprietárias do suporte material onde se encontra fixada a obra protegida (e.g. o quadro, o livro, o registo fonográfico), não detêm, contudo, qualquer direito de autor ou direito conexo sobre a própria obra ou material conexo (e.g. a obra artística, o texto literário, a interpretação da obra musical), por isso não têm legitimidade para dar acesso aos mesmos, quando esse acesso dependa da autorização do titular de tais direitos de autor ou direitos conexos.


Sucede, no entanto, que esse acesso nem sempre depende de autorização. Os direitos exclusivos que recaem sobre obras ou materiais protegidos pela legislação de direito de autor e direitos conexos são limitados no tempo. Findo o prazo legalmente estabelecido (regra geral, 70 anos após a morte do autor, no caso do direito de autor, e 70 anos após a publicação, no caso dos direitos conexos), as faculdades de natureza patrimonial caducam e toda e qualquer utilização da obra ou do material conexo passa a ser livre, isto é, independente da autorização do seu titular – diz-se, da obra, que cai no domínio público.


Acresce que a utilização pública da obra ou material conexo pode também ser feita sem autorização do respectivo titular do direito de autor ou direito conexo, ainda antes do prazo de protecção de tais direitos chegar ao fim, em determinadas situações, tipificadas pela lei, como sejam as citações para fins de crítica, discussão e ensino, as reproduções e distribuições para fins de ensino e educação, a colocação à disposição do público de obras órfãs para fins de preservação ou restauro, entre outras.


Ora, em tais casos, em que a obra ou material conexo já não estão protegidos por direitos exclusivos ou em que a utilização da obra ou material conexo seja possível ao abrigo de uma uma excepção ou limitação a tais direitos, os museus, bibliotecas e demais instituições culturais têm o poder-dever de agir em prol do interesse público, facilitando o acesso e utilização do seu acervo cultural.


Não obstante, continuamos a assistir a um excesso de zelo por parte de instituições culturais portuguesas, que, no caso de obras e materiais que se encontram já em domínio público, vedam o pleno acesso e impedem que os cidadãos utilizem livremente os mesmos, para fins comerciais ou não, sem controlo da instituição que detém essa obra ou material no seu acervo.


Se, por um lado, se compreende a necessidade da instituição regular o acesso aos locais onde essas obras e materiais estão expostos (não permitindo, por exemplo, o registo fotográfico a todo e qualquer momento, por motivos de segurança), por outro não se pode aceitar que uma instituição disponibilize digitalmente imagens da sua colecção e não adopte políticas abertas relativamente à utilização de tais imagens (ou que permita ampla utilização, mas apenas de imagens com reduzida qualidade, baixa resolução ou com marcas de água).


Estando a obra ou material conexo no domínio público, as instituições culturais só têm duas opções: ou permitem que a comunidade faça os seus próprios registos fotográficos, videográficos ou outros de tais obras ou materiais, e/ou disponibilizam à comunidade, sem restrições algumas, os registos de alta qualidade e resolução efectuados pelas próprias instituições. De outra forma, a comunidade não pode exercer o seu direito a usufruir, utilizar e explorar o património cultural e científico que se encontra no domínio público.


As instituições culturais não têm o direito de definir onde, quando e como o acesso e utilização de cada obra e material conexo se fará, quando falamos de domínio público. O facto de as instituições serem guardiãs dos objectos que se encontram nos seus acervos, não lhes dá o poder de controlar, regular ou fiscalizar as utilizações das imagens e demais registos desses objectos. Só os tribunais, e apenas quando estejam em causa o desrespeito dos direitos morais dos autores, podem impedir certas utilizações de obras e materiais caídos no domínio público.


Já quanto a obras e materiais ainda protegidos por direito de autor e direitos conexos, as instituições têm o dever de conhecer os direitos dos utilizadores, a fim de permitirem o exercício dos mesmos, dessa forma alcançando o equilíbrio necessário entre o respeito pelos direitos dos autores e o respeito pelos direitos dos utilizadores. A legislação de direito de autor e direitos conexos pode trazer algumas dificuldades de interpretação no que respeita a algumas (não todas) excepções e limitações a esses direitos. Tal não deve, no entanto, inibir os agentes e instituições culturais de procurarem conhecer essa legislação e até desenvolver, colectivamente, boas práticas no que respeita ao exercício das excepções e limitações aos direitos de autor e direitos conexos.


Finalmente, no que respeita aos materiais produzidos pelas próprias instituições culturais, que tenham um interesse público, como sejam as suas bases de dados, não existem razões para impedir o acesso, transformação e partilha livres desses materiais, e deveria ser uma prioridade das instituições portuguesas – e dos profissionais que nelas ou com elas trabalham – disponibilizar, ao abrigo de licenças abertas de utilização de direito de autor e direitos conexos (por exemplo, as licenças Creative Commons), tais materiais.


Às instituições do património portuguesas que desejem actuar como garantes do interesse público e dos direitos dos utilizadores, não faltarão publicações a que possam recorrer para se actualizarem quanto ao pensamento que se tem desenvolvido nos últimos anos à volta do sector do património, nem bons exemplos nacionais (e.g. Biblioteca Nacional) e internacionais (e.g. Rijksmuseum) e boas práticas (mormente, as desenvolvidas pela Europeana) a seguir. E claro serão sempre todos bem-vindos ao curso Direito de Autor e Domínio Público, promovido pela Acesso Cultura, que tem tentando e continuará a tentar fazer este trabalho de sensibilização e compreensão de todos os direitos em causa, para que se mudem práticas e mentalidades no acesso à cultura e ao conhecimento.


 

Teresa Nobre é advogada, coordenadora do capítulo português da Creative Commons e consultora jurídica da associação internacional Communia em matérias de Direito de Autor, domínio público e direitos dos utilizadores. Representa a Communia no Comité Permanente em Direito de Autor e Direitos Conexos da Organização Mundial de Propriedade Intelectual. Participou activamente no recente processo legislativo europeu de reforma do Direito de Autor, com estudos, publicações e intervenções em defesa do interesse público.

Dos estudos comparativos realizados destacam-se os seguintes: “Educational Resources Development: Mapping Copyright Exceptions and Limitations in Europe” (Creative Commons, 2014), “Best Case Scenarios for Copyright” (Communia, 2016), “Copyright and Education in Europe: 15 everyday cases in 15 countries” (Communia, 2017), “Educational Licenses in Europe” (Communia, 2018), “Copyright and Educational Activities in Asia-Pacific” (Education International, 2019).

Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2003). LL.M. em Propriedade Intelectual pelo Munich Intelectual Property Law Centre (2009). Colabora há vários anos com a Acesso Cultura, no curso Direito de Autor e Domínio Público.


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