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Os Maios na aldeia de Santa Rita: Celebrar a Primavera com a comunidade local


Os Maios, a Maia e outras tradições festivas do início de Maio

O primeiro dia de Maio é no Algarve dia de festa. Logo pela manhã era hábito “atacar-se o Maio” comendo figos, ou o tradicional queijinho de figo, acompanhados por um copinho de aguardente de medronho. Por toda a região, sobretudo nas zonas rurais, família e amigos juntam-se para merendar no campo, preferencialmente próximo de uma ribeira, sendo a principal iguaria do dia os caracóis cozinhados de véspera.

Na região, e um pouco por todo o país, a entrada no mês de Maio costumava ser assinalada com ramos de giestas - também chamadas de Maias - pendurados nas portas, nas janelas para afastar o Maio”. Diz-se que a casa deve estar florida no momento em que começa o dia para o “Maio”, o “Carrapato” ou o “Burro” não entrarem. A transição do dia 30 de Abril para o dia 1 de Maio é tempo de rotura, de transição, não isento de perigos e prodígios, personificados nas figuras do “Maio”, do “Carrapato” ou do “Burro” que andam à solta e que é preciso afastar das casas.

Actualmente, uma das tradições festivas que se mantém com bastante expressão na região, é a de no primeiro dia de Maio, se criarem os Maios, enfeitá-los e colocá-los na rua, à porta das casas, muitas vezes acompanhados com ramos floridos. Estes bonecos e bonecas representando pessoas, em tamanho natural, cheios com palha, trapos, jornais amachucados e vestidos com roupa usada, são feitos pelas populações e acompanhados de reproduções de animais, objectos de uso comum, encenando actividades quotidianas, com dizeres a propósito em prosa ou verso, alguns em tom de crítica social.

A tradição está bem viva no Sotavento Algarvio. Com criatividade, voluntarismo, partilha de recursos, os Maios que vemos na região – Olhão, Bias, Afandanga, Estói, Santa Catarina, Santa Rita, Cacela Velha, Manta Rota, Odeleite... – são um movimento cultural genuíno, de raiz popular, mobilizador de vontades e cheio de vida.

Mas ainda está viva na memória dos mais velhos a tradição, que muitos dizem estar na origem dos actuais “bonecos”, de irem as moças para o campo apanhar flores, para enfeitar a casa e o trono onde era sentada a Maia, uma menina vestida de branco e embelezada com fitas e coroas flores, sendo em alguns lugares e ocasiões substituída por uma boneca. São vários e antigos os registos desta tradição no Algarve, que parece ter raízes no culto da Deusa Maia, deusa da terra e da fertilidade a quem na antiguidade clássica era consagrado o quinto mês do ano:

«Muita gente das cidades e vilas vai armar a Maia na sua fazenda e festeja-la com escolhidos manjares em companhia de parentes e amigos. O banquete é precedido de cantigas e brincadeiras. Quando a maia desce do trono a festa acaba.»

(Almanach de Lembranças, 1863)

Nas festas do primeiro dia de Maio no Algarve “em todas as casa se faz uma boneca de palha de centeio – a Maia – em torno da qual há danças durante toda a noite.” (Almanaque Enciclopédico, 1881)

«No Algarve, em Tavira, Castro Marim, Vila Real de Santo António, etc, encontramos costumes idênticos: a “Maia” era aí do mesmo modo personificada por uma rapariguinha muito nova, escolhida entre as mais bonitas, que, vestida de branco e adornada com jóias, fitas e flores, se sentava num trono florido, numa sala ao rés da rua, de porta aberta: em frente da casa, erguia-se um mastro ornamentado com flores e murta, à roda do qual se dançava todo o dia. E todas as casas porfiavam em arranjar a sua “Maia”». (Ernesto Veiga Oliveira, Festividades Cíclicas em Portugal, 1984)

Entre as pessoas mais velhas da zona de Cacela, algumas recordam-se muito bem do baile da Maia e algumas senhoras, agora com os seus 70 e 80 anos, desempenharam, quando jovens, o papel da Maia. Recordam-se de se vestir de branco, muitas vezes com um vestido de noiva que era ajustado ao seu tamanho, e de serem adornadas com jóias e flores. O mais difícil era as horas que tinham de passar sentadas no trono, e o facto de não poderem rir, pese embora as tentativas dos moços para lhes provocar o riso.

Estas tradições associadas ao início de Maio – os piqueniques colectivos no campo, as flores à entrada das casas ou a adornar crianças e jovens, hoje mais os bonecos (maias e maios) – ­ são reminiscências de costumes arcaicos ligados ao fim do Inverno e ao eclodir da Primavera. Assinalam a renovação natureza e simbolizam o poder fecundante da vegetação que desabrocha.

Os Maios na aldeia de Santa Rita

Partindo de uma festividade cíclica com forte expressão na região Algarve, revive-se, desde há três anos, a tradição dos Maios na aldeia de Santa Rita (Concelho de Vila Real de Santo António), onde a mesma teve expressão pelo menos nas décadas de 80 e 90 do séc. XX.

Reviver uma tradição que estava adormecida... fará sentido?

Para o Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela (CIIPC) / CMVRSA, e para os habitantes da aldeia, fez. Por um lado, porque se trata de valorizar um importante momento do ciclo festivo, relevante na região, numa altura em que, como sabemos, se perde a consciência da relação entre as festas e o ciclo astral e agrícola. Por outro lado, porque graças a esta festa se vem estreitando a relação com os habitantes da aldeia e da comunidade próxima (concelho de Vila Real de Santo António e concelhos vizinhos).

Este envolvimento concretiza-se em vários momentos, desde a escolha dos provérbios e quadras populares, recolha de roupas, sapatos e acessórios, bem como jornais para o enchimento, elaboração dos Maios e montagem no espaço público durante os dias de exposição na rua. Ao longo de todo o processo, o jornal “O Tomilho”, editado bimensalmente pelo CIIPC desde 2016, é um instrumento valioso para comunicar e mobilizar a população local, contextualizar do ponto de vista histórico e antropológico esta e outras iniciativas e dar a conhecer resultados.

Os Maios que saem à rua no primeiro dia de Maio são elaborados pelas muitas pessoas, de todas as idades, que se envolvem na iniciativa: população local, mas também escolas e lares do concelho, centros de acolhimento e associações da região, crianças e famílias no âmbito de Oficinas organizadas no CIIPC.

Ao longo de todo o período de preparação da festa reforça-se a identidade local, a auto-estima, as relações de vizinhança, a convivialidade entre participantes. Os mais velhos revivem memórias e aos mais novos dão-se a conhecer as antigas tradições festivas.

Uma manta para a Maia

Este ano, logo em Janeiro, lançou-se novo desafio à comunidade: criar uma grande manta de rosetas de crochet para, no primeiro dia de Maio, adornar a Maia no centro da aldeia. Ao longo de 3 meses, reuniram-se no CIIPC, na antiga escola primária de Santa Rita, todas as quintas-feiras à tarde, mais de 2 dezenas de pessoas a fazer rosetas em crochet. E outras tantas, mesmo não estando presencialmente, enviaram os seus trabalhos ou ofereceram lãs.

A adesão foi enorme. Senhoras, que não pegavam nas agulhas de crochet há anos, entusiasmaram-se e das suas mãos saíram dezenas de rosetas coloridas feitas no CIIPC e em casa, ao serão. A alegria das tardes de conversa e convívio, o nascer de novas amizades, o gosto de estar envolvido num projecto colectivo, de reviver antigos gestos e lembranças, de participar numa festividade relevante na região com raízes tão antigas, valeram tanto como o resultado final: uma bela manta, grande e cheia de cor.

Os Maios em Santa Rita neste ano de 2019

Este ano em Santa Rita, o primeiro dia de Maio voltou a ser dia de festa. Celebrou-se a Primavera com a saída à rua cerca de 7 dezenas de Maios. Os Maios, acompanhados de quadras, dizeres e provérbios, colocados nas ruas e à porta das casas, provocaram admiração, reflexão, crítica e riso às centenas de visitantes que passaram pela aldeia nos dias 1 e 2.

À entrada da aldeia esteve em destaque a Maia, vestida de branco e adornada com flores e a sua manta com rosetas de crochet criada por dezenas de pessoas da comunidade que ao longo de cerca 3 meses se juntaram para lhe dar corpo.

Os Maios, e este ano a Maia com a sua manta cheia de cor, são um projecto colectivo de valorização do nosso património cultural imaterial, que junta a população de Santa Rita, pessoas de todo o concelho, escolas, lares, centros de acolhimento e associações da região que com entusiasmo e dedicação connosco colaboram. Dão expressão àquele que é um propósito central do trabalho desenvolvido pelo CIIPC, envolver a comunidade local, valorizando os seus saberes e tradições e dar a conhecer o seu património.

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