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O Estado e a FRESS


As recentes evoluções no caso da Fundação Ricardo do Espirito Santo Silva (FRESS) são a todos os níveis preocupantes e merecem séria reflexão. O que está em causa não é apenas a sobrevivência de uma importante instituição cultural, o que está em causa é o papel do Estado na defesa e promoção do património cultural nacional, quando a instituição em causa é fruto de uma raríssima (e pioneira) acção de mecenato cultural em Portugal – importa relembrar que a Fundação e a sua colecção foram oferecidas pelo banqueiro Ricardo Espírito Santo Silva ao Estado Português em 1953 – a favor do próprio Estado. O que está em causa, portanto, é o que o Estado pretende agora fazer, quando parte da responsabilidade por esta situação é do próprio Estado.

A história resume-se em poucas palavras: ao Estado é oferecida uma valiosa colecção, já organizada em museu (com edifício e tudo), o Estado olhou sempre para o ‘presente’ com olhos desconfiados, considerando que se a família Espírito Santo fazia parte do conselho directivo, então que o financiamento viesse deles (afinal tinham lá o nome), a família pensava, também com ar desconfiado, que se a fundação tinha sido dada ao Estado, então o Estado que a financiasse, afinal era propriedade pública (embora constituída em fundação de direito privado). Bom, a verdade é que o necessário financiamento foi sempre um problema crónico, resolvido com a barriga, e assim chegamos (sessenta anos depois!) a uma agonia extrema que no ano passado teve como consequência desesperada a difícil decisão de excluir finalmente o Estado do seu financiamento, assegurando em contrapartida o apoio explícito do Banco Espírito Santo e de outras empresas do grupo como principal e único mecenas do projecto… Infelizmente a história que se seguiu é conhecida de todos: um ano depois, de maneira absolutamente extraordinária e impensável, o Grupo e o respectivo Banco pura e simplesmente desapareceram no ar em poucos dias e a FRESS está agora pior do que alguma vez esteve! A realidade ultrapassa a ficção, diz-se…

O Estado, pela mão da Secretaria de Estado da Cultura, diz agora que “acompanha a situação com preocupação” e que o problema se divide em dois: a colecção e a instituição. No primeiro caso, ocorreu-lhes classificar algumas peças, presume-se que para assegurar que não saem do país, no segundo caso, continua (até ao momento) a acompanhar com preocupação. Ocorre pensar: mas afinal para que é que serve o Estado, quando é preciso? Qual é, ou qual deve ser, o papel do Estado nestas situações? Creio que cabe ao Estado, antes de mais, uma acção firme e decisiva, sem grandes pruridos ideológicos: deve actuar! Como? Não tomando conta da ocorrência, mas tomando conta da situação. Se, apesar do difícil contexto económico e social, o Estado tomou conta de um BPN (milhares de milhões de euros…), porque será tão difícil separar o trigo do joio (a falência do grupo Espirito Santo é uma coisa, a sobrevivência da FRESS é outra, no primeiro caso, um assunto de mercados, no segundo, um assunto de cultura) e assegurar no curto prazo a continuidade mínima do projecto da FRESS? Tudo o que se hoje relaciona com o nome Espírito Santo tornou-se motivo de incómodo e repúdio, mas é de elementar justiça não esquecer o importante papel que tiveram enquanto principal promotor, financiador e mecenas de inúmeras acções culturais e patrimoniais nas últimas décadas, de cuja FRESS é um bom exemplo e que não deve ser desprezado. Não se deite fora o bebé com a água do banho…

O que está em causa é o futuro de um projecto cultural, de um projecto educativo e de um projecto de defesa e promoção das artes decorativas tradicionais portuguesas de elevadíssimo nível, que valeu aliás à FRESS a maior distinção europeia na área do património cultural, o prémio União Europeia/Europa Nostra 2013. Então, porque está o Estado tão demorado em actuar? Pense-se a médio ou longo-prazo, no projecto cultural que inclui duas escolas, 18 oficinas tradicionais (algumas únicas na Europa) e um extraordinário museu de artes decorativas do século XVIII, que dá emprego a várias dezenas de professores, mestres-escola e funcionários, que dá formação a centenas de alunos e que manteve viva a prática das artes decorativas!

Sejamos claros, não cabe ao Estado salvar todos os projectos culturais privados (ou de direito privado) que não encontram viabilidade no mercado. De acordo. Mas cabe ao Estado estar lá quando o projecto apresenta indubitável valor público e a procura de uma solução pode ser viabilizada pela intervenção atempada do Estado. Ocorre-me um caso recente: há cerca de quatro anos, a Fábrica de Faianças Bordalo Pinheiro, nas Caldas da Rainha, encontrava-se numa difícil situação económica e em risco de fechar. Tratando-se de uma empresa privada, o então governo Sócrates apoiou activamente a entrada do grupo Visabeira (accionista também da Vista Alegre) que trouxe novas sinergias ao negócio e um renovado espírito às faianças e ao seu futuro. Fortemente impulsionadas pela acção mediática de Joana Vasconcelos, as peças são hoje novamente mais procuradas, mais expostas e mais valorizadas. Parece ter resultado. Existe um precedente. Haja também no caso da FRESS vontade política para ajudar a encontrar soluções. É esse o papel do Estado.

P.S. - Também à sociedade civil cabe um papel. Pela minha parte, telefonei há alguns meses à Conceição Amaral, directora da FRESS, mostrando a minha solidariedade e oferecendo ajuda (no muito pouco que está ao meu alcance) para divulgar, discutir, promover um debate, o que fosse possível. Sei que muitos outros o fizeram também, nomeadamente a própria Joana Vasconcelos. É nesse sentido que escrevo este artigo.

José Maria Lobo de Carvalho

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