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Centro da Cidade do Rio de Janeiro. Património Cultural Nacional e Paisagem Cultural da Humanidade?


Na formação do Centro da Cidade do Rio de Janeiro percebeu-se ao longo do tempo a sucessão de três paisagens urbanas. A primeira vincula-se aos primórdios da fundação da cidade perpetuando-se ainda por todo o Período Colonial (séculos XVI e início do XIX) e parte do Imperial (1822-1889). A segunda moldou-se especialmente na Era Republicana, notadamente na fase denominada Primeira República, do final da década de 1890 até à Revolução de 1930. A última delas, coincide com a renovação urbana de trechos desta área iniciada a partir da década de 1940, fundamentada nos cânones das cidades modernas preconizados pela Carta de Atenas de 1933, de Le Corbusier.

A paisagem inicial foi gradualmente modificada no decorrer da segunda metade do século XIX até às grandes reformas do Prefeito Pereira Passos do início do século seguinte, nos moldes das intervenções Parisienses de Haussmann. Restou do Centro do Rio Colonial poucas edificações, todas de carácter monumental, as quais ficaram desprovidas do contexto urbano desta época. Imagens remanescentes do Brasil deste tempo concentram-se em cidades de médio e pequeno porte localizadas maioritariamente no interior do país. Muitas delas foram protegidas como bens culturais de representatividade nacional. Algumas como Ouro Preto, Olinda e São Luiz são consideradas Património Cultural da Humanidade pela UNESCO. Salvador, a área denominada como Pelourinho, é uma excepção em termos metropolitanos. A paisagem subsequente impôs-se na égide de Pereira Passos, o Haussmann Tropical, conforme definido na tese de mestrado posteriormente publicada de Jaime Benchimol (1992). As feições arquitectónicas dela são do Período Eclético com conceitos predominantemente classicizantes baseados em soluções originais da Linguagem Clássica da Antiguidade (Grécia e Roma), Renascimento, Maneirismo, Barroco e Neoclássico. Mescladas em segundo plano com inserções de elementos decorativos da Arquitectura Medieval (Românica e Gótica), de contribuições de culturas tradicionais de outros continentes (Egípcia, Indiana, Chinesa, etc.) e Art Nouveau. Apresentam repertórios compositivos sofisticados, diversificados e injustamente acusados de falta de originalidade por defensores de tendências estilísticas subsequentes (notadamente Neocolonial e Modernista) e por alguns investigadores da literatura especializada de História da Arquitectura e do Urbanismo. O cenário em questão representa além disso um importante momento da História Brasileira, da transição da sociedade patriarcal para a urbana. Da tentativa de se apagar uma herança colonial escravocrata fundamentando-se nos ambientes burgueses europeus sobretudo dos estabelecimentos culturais, comercias e das moradias de Paris.

Figura 1 - Segunda Paisagem Urbana. Sobrados do Período Eclético Contextual da virada dos séculos XIX para XX. Conjuntos de postais das APACs do Centro publicados pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro nas décadas de 1980 e 1990. Edição gráfica: Julio Sampaio, 2014.

O Rio transforma-se nesta ocasião num paradigma nacional, no cartão postal de uma nova e emergente nação dita capitalista. O conjunto arquitectónico que restou desta segunda paisagem é repleto de edificações de diferentes significações ambientais, de notáveis méritos e de valor de conjunto, não tão distantes dos actuais padrões de utilização. Predominam neste universo grupos de sobrados com o repertório estilístico indicado acima construídos maioritariamente por mestres de obras portugueses. Estendendo-se por cerca de 450 hectares que equivalem aproximadamente a 70 por cento da área do Centro concentrando-se nas Áreas de Protecção do Ambiente Cultural/APACs do Corredor Cultural, Cruz Vermelha, Teófilo Otoni e parte da Saúde, Gamboa e Santo Cristo/SAGAS, as quais juntas possuem em torno de quatro mil edificações protegidas.

Esta imagem eclética, diversificada, original, até então cosmopolita e tão repleta de conteúdos culturais e sociais resistiu ao processo de modificação imposto pelo terceiro panorama edilício do Centro do Rio que se contextualiza nas drásticas cirurgias urbanísticas das renovações das metrópoles brasileiras da década de 1950 em diante. Ainda luta contra um esvaziamento histórico de moradores, actividades comerciais e de serviços que vem ocorrendo desde a virada dos séculos XIX e XX, motivado sobretudo por um política urbana monofuncionalista e especulativa que induziu novos vectores de expansão urbana da cidade e a consolidação de seus respectivos subcentros.

Figura 2 – Área central do Rio vista do Morro do Pão de Açúcar, de dentro da Paisagem Cultural da Humanidade listada pela UNESCO. Foto: Julio Sampaio, Junho de 2014.

A comovente resistência do ambiente urbano tradicional do Centro da Cidade do Rio, que abrange as áreas mencionadas acima, dos exemplares que sobraram do Período Colonial e de maneira especial deste Período Eclético altamente peculiar, mesclados por contribuições significativas de manifestações arquitectónicas posteriores pontuais, Art-Decó, Protomodernas e Modernistas, já se encontra reconhecida pela política de protecção das APACs da Prefeitura. Porém, as destacadas representatividades históricas, artísticas, culturais e afectivas deste legado transcendem as fronteiras locais. Em termos qualitativos e quantitativos, somado com as áreas periféricas e limítrofes protegidas da Zona Portuária (SAGAS), dos Bairros de Santa Tereza, da Cidade Nova e Catumbi, que adicionam mais duas mil edificações protegidas neste agrupamento eclético contextual, é o maior exemplar do país no género tipologicamente homogéneo, íntegro e razoavelmente preservado.

Sendo assim, este Centro, principalmente a malha contínua composta pelas APACs em destaque, poderia ser do mesmo jeito reconhecido como Património Nacional? Ter o mesmo status simbólico que gozam as rotuladas “cidades históricas” do Período Colonial chanceladas pela instância de protecção federal? Relativizaríamos desta forma a salvaguarda de áreas urbanas no país baseada numa visão conceitual mais abrangente preconizada, por exemplo, pela Carta de Petrópolis? Incluiríamos os citados arredores também? O primeiro e quem sabe ambos os casos fariam parte do perímetro da área listada como Paisagem Cultural da Humanidade pela UNESCO a qual tangencia todas estas localidades? Corrigiríamos assim estes lapsos?

Figura 3 – Centro do Rio e arredores. Vista do Morro do Cristo Redentor, Paisagem Cultural da Humanidade. Foto: Julio Sampaio, Junho de 2014.

Certamente o andamento dos questionamentos em evidência demandaria detalhes apropriados e não poderia ser encarado como engessamento. Mas, como um selo de qualidade complementar que respaldaria as estratégias de conservação de todo este contexto nas suas dimensões físicas, sociais e económicas de acordo com as recomendações feitas no artigo anterior.

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