top of page

O caderno de Lavores de Maria Armanda Marques Carneiro, ou as aulas de «Educação Feminina» na Escola


(Parte I)

Por acaso do destino veio-me ter às mãos um caderno de lavores encontrado numa quinta do Lugar de Martins, em Cabreiros, concelho e distrito de Braga (1).

Trata-se do Caderno de Lavores da aluna Maria Armanda Marques Carneiro, que então frequentava a 1.ª Classe da 6.ª turma da Escola do Magistério Primário, tendo o N.º 150. Não temos a certeza absoluta que esta aluna tenha frequentado a Escola do Magistério Primário de Braga, mas, dado o local onde foi achado o caderno leva-nos a concluir que assim fosse.

Não sabemos quando foi elaborado este Caderno de Lavores, mas, talvez tenha sido realizado no âmbito do curso do Magistério Primário, reaberto em 1942, depois de ter sido encerrado em 1936 devido ao excesso de professores em relação às vagas então existentes para o exercício da carreira. Será, pois, um caderno de Lavores posterior a 1942, tendo, talvez, sido realizado na década de 40.

Em 1942, quando reabrem as Escolas do Magistério Primário em Lisboa, Porto, Coimbra e Braga, é publicado em Diário da República o Decreto-Lei 32:343 de 5 de Setembro de 1942, no qual se explica o motivo da reabertura e se define a estrutura do curso, que então era de dois anos (três semestres lectivos), aberto à frequência de ambos os sexos, se bem que “dois terços do número de vagas serão preenchidos por candidatos do sexo feminino” (Alínea 1.ª do Artigo 9.º do Decreto-Lei 32:343 de 5 de Setembro de 1942).

Do curso constam as disciplinas de «Desenho e trabalhos manuais educativos» e a de «Educação Feminina», integrando as três unidades lectivas em que o curso se desenvolve, e com uma carga horária de oitenta minutos, enquanto as restantes disciplinas se efectuavam em cinquenta minutos. A disciplina de «Educação Feminina» era frequentada apenas pelo sexo feminino, sendo que “na disciplina de educação feminina cada turma não terá mais de quinze alunas” (Alínea 2.ª do Artigo 12.º do Decreto-Lei 32:343 de 5 de Setembro de 1942).

O Decreto-Lei determina em pormenor quem deve ser professora de Educação feminina: “A professora da disciplina de educação feminina será escolhida pelo Ministério da Educação Nacional entre diplomadas com os cursos de costureira de roupa branca, modista de vestidos, bordadora-rendeira ou lavores femininos, segundo a organização do decreto-lei N.º 20:420, ou com cursos equivalentes de organizações anteriores, que tenham exercido durante dois anos com boas informações de serviço as funções de professoras de lavores femininos dos liceus ou mestras do ensino técnico profissional” (Artigo 28.º do Decreto-Lei 32:343 de 5 de Setembro de 1942).

Descrição física do Caderno de Lavores

O Caderno de Lavores que possuo mede 31,5 x 21,5 cm, consta de vinte folhas de papel almaço, dobradas a meio, o que dá quarenta folhas não numeradas, sendo que intercalam, alternadamente, folhas pautadas e folhas brancas dobradas a meio. Estas folhas duplas, pautadas e brancas, dobradas a meio possuem marca de água, num dos lados «JPS & c.ª» dentro de cartela e, por baixo, os dizeres «ALMAÇO ESPECIAL»; no outro lado, também dentro de cartela, a figura de um homem com barba empunhando uma espada e com um livro (?) na outra, por baixo os dizeres «ALMAÇO ESPECIAL». Estas folhas dobradas a meio são envolvidas por uma folha dupla dobrada a meio, branca, com mais gramagem e sem marca de água.

O caderno estava agrafado com três agrafos, que se retiraram dado se encontrarem em muito mau estado de conservação e estarem a afectar o papel. Destas folhas apenas foram utilizadas catorze folhas simples, ou seja, vinte e oito páginas.

Para facilitar o seu uso numeramos a lápis, no canto superior, todas as páginas, excepto a capa do caderno, o que deu quarenta páginas.

A Capa encontra-se ilustrada com a palavra «LAVORES» e um ramo de flores aguarelados contendo também os seguintes dizeres manuscritos: «Caderno de Maria / Armanda Marques Carneiro / Aluna n.º 150 / 1.ª classe. 6.ª turma / Escola do Magistério Primário.

Também aguareladas são as páginas 3, 7, 11, 15, 19 e 21.

O caderno é composto por texto manuscrito nas folhas pautadas, sendo as folhas brancas ilustradas, no verso, com aguarelas e modelos de trabalhos de costura, sendo o reverso deixado vazio.

Conteúdo do Caderno de Lavores: o texto

O Caderno de Lavores encontra-se manuscrito a caneta de tinta preta, constando de vários itens relativos à costura e ao bordado, os quais constituem uma espécie de manual sobre como costurar, bordar e, o que naqueles tempos era importante e que hoje parece ter perdido actualidade, como reciclar os materiais, ensinando a passajar, a remendar, a fazer consertos e a dar utilidade à roupa velha. Quando esta já não tinha utilidade para a pessoa não se jogava fora, aconselhando-se a que “se as nossas posses o permitirem devemo-nos lembrar dos pobres dando-lhes a roupa posta de parte”.

Modo de estar nos trabalhos de costura e de bordar

Neste Caderno de Lavores começa por se fazer considerações de índole geral sobre a postura física a ter na execução dos lavores que se irão praticar. De facto, “seja qual for o género de trabalho que queiramos executar devemos escolher uma posição graciosa e higiénica. Para isto é necessário que a altura da cadeira seja proporcional à da mesa e que os braços sustentem os tecidos a uma altura suficiente para não sermos obrigados a baixar a cabeça que deve ficar apenas levemente inclinada para a frente” (P. 1).

O corpo deve manter-se direito “tomando uma posição airosa, que nos não prejudique a vista” (P. 2).

Explica-se também como se deve posicionar a mão – “a mão esquerda conserva o tecido preso à almofada sem se apoiar sobre ela nem sobre a mesa de costura” –, e como pegar na agulha – “o polegar e o indicador da mão direita seguram a agulha enquanto o terceiro dedo munido do dedal e colocado contra a agulha a impele para diante para que os dois dedos indicados possam retomá-la e retirá-la com o fio. Este, passando entre o quarto e o quinto dedo forma em volta deste último um anel que se deixa deslizar gradualmente para impedir que se formem nós nos dedos” (P. 1).

Utensílios necessários para costurar

No Caderno de Lavores enumera-se o que se considera necessário para se costurar ou bordar:

• Tecidos. São referidos os tecidos de linho, linho liso ou granité, linho grosso, estopa, pano alinhado, algodão e algodão adamascado.

• Mesa de costura

• Cadeira. Chama-se a atenção para a necessidade de que “a altura da cadeira seja proporcional à da mesa e que os braços sustentem os tecidos a uma altura suficiente para não sermos obrigados a baixar a cabeça que deve ficar apenas levemente inclinada para a frente” (P. 1).

• Almofada. Usada para prender o tecido que se quer trabalhar (P. 1).

• Fio de algodão, sendo que “as melhores marcas de algodão são a DMC ou marca Âncora” (P. 2). No bordado da Madeira, devia usar-se o “fio Madeira”, no bordado Hedebo o “fio de linho”, e no bordado de piqué “o algodão mouliné ou DMC” (P. 27).

• Agulhas. Estas não devem ser compridas, pois “quebram como o vidro ou se dobram facilmente”, e devem ter o fundo “bem polido para não cortar o fio”. Devia possuir-se um “sortido de agulhas de números diferentes e escolher sempre a agulha um pouco mais gorda que o fio para este poder passar sem dificuldade no tecido”. Para evitar que as agulhas enferrujem deve usar-se “uma almofada esmerilada [?] ou um agulheiro onde as introduzimos com pó de talco e pó de amido” (P. 1-2).

• Tesouras. Deveria possuir-se “dois pares de tesouras, umas para talhar e outras para cortar os fios e pequenos bocados de tecido. Os anéis da tesoura devem ser largos e redondos para não magoarem os dedos” (P. 2).

• Dedal. Este deveria ser de metal, o que “é preferível ao de osso que é demasiado frágil e ao de prata cujos bordos são muitas vezes bastante profundos. Um bom dedal deve ser leve, um pouco arredondado na extremidade e não ser saliente” (P. 2).

Aprender a costurar o quê?

Neste Caderno de Lavores ensina-se como fazer “roupa de cozinha”, “roupa de mesa”, “roupa para serviço de chá” e “roupa de cama”.

A roupa de cozinha é constituída por aventais, toalhas e panos, descriminando-se a existência de três tipos de aventais – “avental de peito”, “avental franzido” e “avental flutuante”. Os aventais deveriam “ser feitos dum tecido bastante forte ou escuro” e os panos de cozinha “dum tecido forte, estopa ou linho grosso” (P. 13).

A roupa de mesa é constituída por toalhas e guardanapos usando-se “quase sempre os adamascados. No entanto também se emprega o linho liso ou granité”, sendo que toalhas e guardanapos deveriam “condizer, isto é, serem do mesmo tecido” e deveriam levar bainhas feitas a “ponto de costura, posponto e ponto aberto”, devendo ser marcadas ou levar monograma (P. 17).

A roupa para serviço de chá podia não ser branca, “mas antes lavrada em dois tons, por exemplo: cinzento e branco”. Toalha e guardanapos para serviço de chá costumavam ser franjados, ao contrário das toalhas de mesa que levavam bainha, podendo esta roupa ser “bordada a branco ou a cores, a retalho, isto é, com linho de cor aplicado ou com rendas aplicadas. Usa-se muito também, esta roupa bordada a ponto de cruz, empregando-se para este fim algodão de cores azuis e vermelhos, por serem as cores mais firmes” (P. 17-18).

A roupa de cama é constituída por lençóis, fronhas para travesseiros e almofadões. Os lençóis eram feitos “de linho, pano alinhado ou de algodão”, levando bainhas feitas “a ponto de bainha, posponto ou ponto aberto”, e devendo ser marcados ou bordados com “as iniciais ao meio do lençol cerca de 20 cm acima da bainha mais larga, usando-se para esse fim o ponto de cordão, plumeti”. As costuras das fronhas deviam ser feitas “a posponto ou costura inglesa”, podendo levar as iniciais bordadas, sendo que “os almofadões podem-se ornar de diversas formas ou com recortes, com bainha aberta, rendas, etc." (P. 23).

Pontos de costura

Neste Caderno de Lavores fala-se de diversos pontos usados com diferentes finalidades, explicando-se como se fazem e para que servem:

• Ponto aberto

• Ponto adiante

• Ponto atrás. Usado “para ornamentar e para as costuras” (P. 2).

• Ponto de bainha

• Ponto de cordão direito ou plumeti. Usado principalmente para bordado de letras, algarismos, monogramas, folhas e flores (P. 28)

• Ponto de cordão oblíquo

• Ponto de costura inglesa. Usado para unir as ourelas da fronha. (P. 23).

• Ponto de cruz. Usado, por exemplo, para bordar a “roupa para serviço de chá”, toalhas e guardanapos, “empregando-se para este fim algodão de cores azuis e vermelhos, por serem as cores mais firmes” (P. 17).

• Ponto de festão ou Richelieu

• Ponto de lado. Usado nos panos de cozinha para fazer “uma bainha estreita cozida a ponto de lado ou posponto” (P. 13).

• Ponto de luva. Usado quando se pretende reaproveitar um lençol estragado: “se [o lençol] não tem costura pelo meio, corta-se a fio direito a todo o comprimento e unem-se em seguida as ourelas a ponto de luva” (P. 9).

• Ponto de pé de flor. Usado para “contornos e monogramas de toalhas, guardanapos e para o bordado sobre tule” (P. 28).

• Posponto. Usado “em costuras que façam força“ (P. 2).

Ensina-se também a casear e a fazer as bainhas abertas.

E quando a roupa se estraga?

Nestas aulas de «Educação Feminina» ensinava-se também a passajar a roupa que se rompia, aconselhando-se, no entanto, a não esperar “que o tecido esteja completamente esburacado, ou que não apresente já a urdidura. Logo que se conhece que o fio está puído e que começa a ceder num sítio faz-se uma passagem que nestas condições é muito fácil”. Podiam fazer-se “quatro tipos de passagem, a passagem comum ou elementar, rosada, perdida e adamascada” (P. 5).

Mas, quando já não era possível passajar optava-se por remendar a roupa, o que se fazia “por meio dum cerzido ou duma costura a ponto adiante”. Os remendos faziam-se principalmente na “roupa interior”, devendo evitar-se “pôr os remendos nos vestidos, fatos, roupa de mesa, etc.” (P. 9).

Bordados

Neste caderno de lavores começa por explicar-se que a designação bordado a branco, “já não é aquela que se usa hoje, porque o bordado actualmente faz-se tanto com fio branco, como com fio de cor, portanto empregamos para este género de bordado, o nome de bordado sobre branco”, o qual é utilizado “exclusivamente para a guarnição de roupas e objectos de toilette” (P. 27).

De seguida enumeram-se os diversos tipos de bordado referidos neste Caderno de Lavores:

• Bordado dinamarquês, conhecido com o nome de Hedebo;

• Bordado em relevo, feito a ponto de festão, mas à mão;

• Bordado género suíço;

• Bordado piqué, o qual no século último era empregado como guarnição de roupas e vestidos;

• Bordado Renascença;

• Bordado Richelieu;

• Bordados da Madeira;

• Bordados veneziano, “imitação das rendas de Veneza que podem ser consideradas a parte mais artística do bordado sobre branco” (P. 27).

1) Agradeço à Dr.ª Margarida Coutinho e marido, residentes no Porto, que me ofereceram recentemente este caderno de Lavores, o qual se encontrava na quinta que adquiriram no Lugar de Martins, em Cabreiros.

Capa do Caderno de Lavores

P. 1

P. 2 e 3

P. 4 e 5

P. 6 e 7

P. 8 e 9

P. 10 e 11

P. 12 e 13

P. 14 e 15

P. 16 e 17

P. 18 e 19

P. 20 e 21

P. 22 e 23

P. 24 e 25

P. 26 e 27

P. 28 e 29

Contra-capa

bottom of page