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1,2,3... DGPC outra vez


Catarina Valença Gonçalves

(Historiadora da Arte e Empresária)


Recentemente, foi apresentada aquilo que seria uma nova política para o Património Cultural consubstanciada na “reparação do erro do passado”, nas palavras do actual Ministro da Cultura: um erro de política pública que teria sido cometido há 10 anos e que consistiu na reunião num só organismo (DGPC - Direcção Geral do Património Cultural) das várias dimensões temáticas e de gestão que compõem o universo patrimonial.


Para reparar esse dito erro organizacional, decidiu-se voltar a dividir o que, dizem, nunca deveria ter sido junto, e separar a gestão patrimonial e museológica, desta feita, em 2 organismos: um, com a responsabilidade normativa, de conservação e salvaguarda relativamente ao património classificado e, outro, com a responsabilidade da gestão e valorização do património sob tutela do Estado, centrando-se nos equipamentos geradores de números relevantes de visitantes e receitas.


Questionamos: esta nova alteração do modelo de gestão do Património Cultural baseia-se em que avaliação? Que perguntas foram, à data de hoje, formuladas como matriciais para o desenvolvimento de uma resposta consistente, agregadora, integrada e com carácter prospectivo para uma mais oportuna valorização do Património Cultural em Portugal?


Qualquer resposta do ponto de vista de política pública terá de partir, antes de mais, do conhecimento profundo da caracterização do parque patrimonial do país e da lúcida assunção dos meios humanos e financeiros efectivamente disponíveis à escala do território nacional, bem para além da capacidade instalada de natureza exclusivamente pública: Portugal tem mais de 35 0000 monumentos inventariados, mais de 4500 classificados e apenas cerca de 250 abertos ao público com entrada controlada. Caso pudéssemos colocar os mais de 4500 monumentos a receber visitantes, seriam atingidos cerca de 56 milhões de visitas, gerando mais de 3 vezes da receita actual apenas em bilhética, contribuindo para 1 emprego a tempo inteiro por cada 25 000 visitantes por monumento, aumento de 3% para os empregos directos em hotelaria e, finalmente, aumento de mais de 3% em dormidas por município[1].


Como faremos, então, para aproveitar esta “matéria-prima” equitativamente distribuída pelo país?


Os dados acima referidos obrigam-nos a concluir pela absoluta necessidade de alteração de paradigma de actuação: o Património não deve ser gerido como um Bem sob tutela, mas antes como um Bem Colectivo, relativamente ao qual existem deveres de protecção e direitos de fruição por parte de todos os cidadãos do país, consagrados na Constituição. Todos devem assim ser considerados nas novas dinâmicas da gestão patrimonial, estejam eles organizados na forma de colectividades, cooperativas, associações, fundações, empresas ou sejam parte integrante do sector público.


Por isso, muito mais e muito antes de uma medida avulsa de novas divisões ou fusões de instituições públicas, importa, antes de tudo e de forma premente, definir algo que, em quase 50 anos de Democracia, Portugal nunca teve: uma Estratégia Nacional de Património Cultural e desenhada, pelo menos, a uma década.


Que Património queremos em 2033? Que dimensão deve o Património desempenhar nos programas curriculares do ensino obrigatório? Queremos ter Cursos Profissionais espalhados pelo país dedicados a este recurso endógeno? Como podemos tornar a dimensão das Artes & Ofícios uma âncora de formação e de empregabilidade altamente especializada? Como se garante a fruição dos mais de 4500 monumentos classificados pelas comunidades locais e visitantes e que papel pode ter a sociedade civil neste processo? Deve existir uma quase obrigatoriedade de Visitas Estaleiro-Aberto aquando das acções de Conservação & Restauro? Podem Campos de Voluntariado Internacional para jovens ser uma medida da política pública de recuperação e valorização de património, copiando o modelo francês com 60 anos de experiência comprovada neste domínio? Que dinâmicas prazenteiras imaginamos para a aproximação do cidadão comum a este bem, recorrendo às novas tecnologias, às redes sociais, ao prime time da televisão? Como desfrutamos da sinergia latente entre Senioridade, Património Cultural e Bem-Estar? Do ponto de vista de política económica, evoluímos para uma clusterização e internacionalização do sector, como fizemos noutros domínios?


Estas e muitas outras perguntas seriam obrigatórias numa reflexão conjunta e numa sistematização de respostas que permanecem em falta ao nível da política pública em Património Cultural. E esta deveria ser, de facto, a prioridade: desígnio, visão, metas, metodologia, planeamento e accountability. Só depois de definidos e estabilizados estes pontos chave se promovem alterações tão dispendiosas e incertas nos resultados quanto fusões ou constituições de novas entidades.


Até porque é preciso ter consciência que qualquer crédito que os diferentes governos – todos e não somente o de há 10 anos ... – pudessem ter para explorar esta via da mudança organizacional foi esgotado há muito: em 1974, o organismo que geria o Património Cultural chamava-se DGPC - Direcção Geral do Património Cultural. Desde essa data e até 2023, já foi uma gestão conjunta entre Obras Públicas – os saudosos Monumentos Nacionais (DGEMN) – e o Ministério da Cultura com o então criado IPPC; passando depois para a designação de IPPAR, desdobrando-se ainda em IPM e IPA; voltando a ser um só com o IGESPAR que, por sua vez, absorveu a DGEMN; e, por último, regressando afinal a ser apenas DGPC - Direcção Geral do Património Cultural, exactamente como no princípio, 40 anos antes.


Todas estas mudanças orgânicas demoram muito tempo, custam muito dinheiro – efectivo mas também em custo de oportunidade – e deixam no final deste sucessivo “casar e descasar” muito pouco de política pública minimamente consequente – como a continuada ausência de uma Estratégia Nacional o evidencia.

Desejamos, sinceramente, que não seja esta nova organização institucional um castelo iniciado pelas ameias... porque se for, daqui por uns anos e largos milhares de euros em novo estacionário, placas de escritórios, cargos, vídeos promocionais, inaugurações e afins, virá outro ministro imputar o erro aos “novos últimos 10 anos” e, de forma aparentemente audaciosa, reparar ditos erros do passado regressando a um qualquer dos inícios já anteriormente experimentado: 1,2,3, DGPC outra vez*...

[1] Cf. GONÇALVES, CARVALHO e TAVARES, Estudo Património Cultural em Portugal: Avaliação do Valor Económico e Social, Fundação Millennium Bcp, Lisboa, 2020.


*Artigo originalmente publicado no jornal Público no dia 11 de Novembro de 2023.

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