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Porquê Desenhar?



Mário Linhares*


Desvendo desde já a conclusão deste texto. Desenha-se porque sim, mas também se desenha porque não. É isso mesmo, um aparente paradoxo…Por vezes é o impulso que nos faz tirar a caneta, ou outro riscador qualquer, e desenhar compulsivamente como se de uma sede insaciável se tratasse. O americano Alan E. Cober falava desta compulsão como algo impossível de conter. Não por se tratar de uma força descontrolada, mas porque desenhar desempenhava um papel importante demais na sua vida para ser suprimido. Mas nem só de impulso vive o desenho. Dos textos que chegaram até nós, e que referem a sua origem, pode depreender-se que ele tem uma utilidade. Conta Plínio, o historiador romano, no seu texto “História natural”, que a filha de um oleiro traçou uma linha em redor da sombra projetada do rosto do jovem por quem estava apaixonada. Isto com o auxílio de uma lanterna para projetar a luze antes dele partir para o estrangeiro, supostamente para a guerra. Do tanto que se pode retirar deste brevíssimo texto de Plínio, ocorrem-me duas situações. A primeira é referida, e muito bem, por Mário Bismarck no seu texto “Contornando a origem do Desenho”, quando lembra que não há referência aos instrumentos utilizados. Parece ser mais importante o ato de desenhar e a utilidade de preservar o perfil daquele jovem amado do que propriamente fazê-lo com um material particular. A segunda é a relação direta desta história de Plínio com o trabalho da Lourdes Castro. Os desenhos em sombra que ela nos deixou alcançam um outro território interpretativo. Além de preservarem, evocam. Despertam memórias. Ao sintetizarem, permitem a multiplicação de imaginários. São bidimensionais, mas sugerem-nos volume. São e não são. E, por isso, são mesmo. Se o texto de Plínio, datado do século I, não nos dá respostas que clarifiquem o possível paradoxo do desenho, podemos sempre recuar mais atrás no tempo e olhar os sulcos gravados nas rochas do vale do Côa há mais de vinte mil anos. A razão pela qual foram feitos continuará a ser motivo de interpretação insolúvel e, mais uma vez, o que se discute não é como foram feitos, mas por que razão aquele lugar reúne tantas gravuras rupestres. Não são desenhos numa folha de papel, mas em pedra. Porque vamos lá vê-los hoje? Diria que pelo espanto. O pasmar de olhar de frente para um ato feito há vinte milénios atrás. O silêncio que se impõe ao olhar uma rocha lisa sem um único traço e, mesmo ao lado, uma outra com vários desenhos sobrepostos. A consternação de não termos uma ciência que nos dê uma resposta exata para aqueles desenhos. A maravilha de sairmos de lá com mais perguntas que respostas.

Não será insensatez dizer que se desenha com um propósito, mas também não é ousado dizer que se desenha sem nenhuma razão em particular. O José Tolentino Mendonça, quando ainda não era cardeal, escreveu um texto muito bonito sobre o Elogio da Inutilidade. Refere que só numa entrega silenciosa e sem porquês, tal como acontece com uma criança entretida com um brinquedo (ele usa uma expressão mais bonita: “a entrega que uma criança oferece a um brinquedo”), é que se consegue entender a importância do inútil, já que é aí, diz ele, “que a polifonia da vida se liberta”. Desenha-se por muitas razões, mas talvez as mais interessantes sejam as do tempo que dura o ato de desenhar. No momento em que o papel começa a ser tapado com riscos e manchas, é todo o nosso ser que o trabalha. Não apenas as mãos e o olhar, mas também os filmes que vimos, os artistas que nos impressionaram, a música que ouvimos, a última conversa entusiasmante, as notícias que revoltam, as referências visuais contemporâneas em conjunto com as antigas. Para uns é uma luta contra o papel na primeira meia hora, para outros é exaustão depois desse momento. Termino como se calhar deveria ter começado, com uma breve e pacífica introdução ao desenho do património. Desenhar para preservar e fazer memória. Assim fez John Ruskin em Veneza. Assim fez Adela Breton no México. Assim fez o Lapin no bairro Pobleneu, em Barcelona. Assim fez a Simonetta Capecchi um pouco por toda a Itália, Assim fez um grupo dos Urban Sketchers da China ao desenhar património industrial abandonado. Assim faz todos os anos, e muito bem, a Direção-Geral do Património Cultural, em parceria com os Urban Sketchers Portugal, possibilitando que o desenho aconteça democratizado na sociedade, incentivado para todos, sem galerias de arte ou pretensiosismos, mas com uma intencionalidade: desenhar. No limite, ao desenhar “aumentamos o mundo”, como refere Pedro Janeiro. Oferecermos-lhe algo novo a partir do nosso olhar. E isso basta. Não necessariamente para alguém ver, mas para entendermos melhor o mundo em que vivemos.


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Mário Linhares estudou na António Arroio, licenciou-se em Design Paisagístico (IPVC) e depois em Design de Equipamento (FBAUL). Trabalhou nessas áreas, mas rapidamente a sua paixão de infância falou mais alto e dedicou-se ao Desenho. Mestre em Ensino das Artes Visuais (IE-UL), está a terminar o Doutoramento em Desenho na FBAUL. Desenha compulsivamente e idealiza, sem parar, projetos artísticos e humanitários. É casado, tem um filho, gosta de andar a pé e de bicicleta e de conversar com os amigos. Professor, co-fundador dos Urban Sketchers Portugal, foi diretor de educação dos USk e lidera atualmente vários projetos artísticos e sociais como os 5 Minutos de Desenho, as USkTalks, a Sketch Tour Portugal Reload, ou o Zambujal 360.


Co-autor do livro Diário de Viagem | Costa do Marfim, premiado em França, contribui com desenhos para diferentes livros, exposições, palestras ou conferências em Portugal e no estrangeiro. Viajar, sonhar e desenhar é o que mais gosta de fazer.


O autor utiliza o Acordo Ortográfico.


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