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Objetos de fé alentejanos: ex-votos como património material, imaterial e textual


Marcus Dores*


Em nossa pesquisa de doutoramento (em andamento), temos investigado um objeto patrimonial interessante: o ex-voto. Interessante porque, por um lado, temos um objeto de devoção religiosa que constitui um patrimônio cultural simultaneamente material e imaterial e, por outro lado, temos um texto multimodal elaborado pela junção de texto verbal (a legenda) com texto não-verbal (a pintura) (ver Figura 1). Para além de toda a sua história social, são justamente esses dois grandes aspectos – o valor patrimonial e a multimodalidade – que conferem aos ex-votos um caráter único.



Figura 1 – Ex-voto de Manoel Velladas (1807), Ermida de Nossa Senhora do Carmo da Azaruja


Nesse sentido, este artigo assume um duplo papel de divulgação: queremos i) fazer circular e divulgar essa importante fonte do passado e ii) dar conta do andamento da nossa pesquisa de doutoramento – realizada no Programa de Doutoramento em Linguística da Universidade de Évora, sob orientação das Professoras Doutoras Maria Filomena Gonçalves e Verena Kewitz. O nosso artigo visa também mostrar a importância da adoção de uma visão multidisciplinar na pesquisa de fontes do passado como os ex-votos.


A nossa investigação filia-se, por um lado, ao Grupo “Patrimónios, literacias e diversidade cultural” do Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS-UÉvora/FCT) e, por outro, à Cátedra UNESCO em Patrimônio Imaterial e Saber-Fazer Tradicional: Ligando Patrimônios, motivo por que é nosso interesse corresponder à Agenda 2030: Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU). Dentro dessa agenda, a nossa pesquisa enquadra-se em dois objetivos: Objetivo 4 – Educação de qualidade e Objetivo 11 – Cidades e comunidades sustentáveis. No ODS 4, temos a demanda pela “valorização da diversidade cultural e da contribuição da cultura para o desenvolvimento sustentável”. A cultura também ganha um espaço de destaque no ODS 11. A Meta 11.4, por exemplo, indica a necessidade do fortalecimento dos esforços para proteger e salvaguardar o patrimônio cultural e natural do mundo.


No “Vocabulario Portuguez, e Latino” (1712-1728), obra que inicia a lexicografia portuguesa monolíngue, publicado pelo padre Raphael Bluteau, a entrada relativa à unidade lexical “voto” traz a seguinte definição para ex-voto:


O q̃ se pendura no altar de hum Santo em agradecimento da mercè recebida, e em satisfação do voto que se fez. Ha votos de cera, de prata, etc. ha votos em quadro. Costumavão os Romanos pendurar nos altares de suas fabulosas Deidades, huns fragmentos das taboas dos navios, em que tinhão escapado do naufragio, ou huns quadros, em que se via pintada a mercè, que imaginavão ter recebidopor intercessaõ do Nume, ao qual se tinhão encommendado[1] (Bluteau, 1721, VIII: 582).

À luz disso, de forma resumida, definimos “ex-voto” da seguinte maneira: objeto que é oferecido a alguma entidade espiritual na ocasião de um pedido e/ou como forma de pagamento de promessa. Nesse contexto, esse objeto assume, portanto, um valor testemunhal físico de uma troca espiritual.


A nossa pesquisa incide sobre um recorte temporal que abrange os séculos XVIII e XIX e tem a região do Alentejo como recorte geográfico, escolha que se justifica porque, segundo Monteiro (2014: 2), “[a]inda hoje é no Alentejo que se encontram os mais representativos santuários de ex-votos, que estão muito ligados a peregrinações”. Assim sendo, temos inventariado os ex-votos pintados dos seguintes sítios religiosos: i) Ermida de Nossa Senhora do Carmo, em Azaruja; ii) Santuário do Senhor Jesus da Piedade, em Elvas; iii) Santuário de Nossa Senhora d'Aires, em Viana do Alentejo; e iv) Santuário de Nossa Senhora da Visitação, em Montemor-o-Novo.



Figura 2 – Mapa dos pontos de coleta de ex-votos, no Alentejo, em relação a Lisboa


A natureza dos ex-votos permite análises a partir de diferentes lentes científicas: da História, da Antropologia, da Sociologia, da Teologia etc. Sem descartar essas disciplinas, em nossa pesquisa de doutorado investigamos esses objetos por meio da Filologia e da Linguística. Importa sublinhar que esses objetos de devoção popular – muitas vezes, vulgares e desagradáveis – atravessaram o tempo e chegaram ao presente, deteriorados na sua maioria, como testemunho de uma cultura de fé – expressão votiva de um crente que se viu curado – e como um registro de um estágio pretérito de língua.


Composto por textos verbais (as legendas) e textos não verbais (as pinturas), os ex-votos, que não nasceram para serem históricos, tornam-se ricas fontes de estudo. É importante destacar, também, que esses objetos possuem um valor material e um valor imaterial: material, porque estão em causa fontes históricas que agregam informações únicas sobre parte da história de um povo; e valor imaterial, porquanto dão testemunhos de práticas socialmente relevantes. Daí o nosso interesse em contribuir, mesmo que minimamente, com a preservação desse material que, muitas vezes, por serem frágeis em diferentes aspectos (ver Figura 3), são perdidos ao longo do tempo.



Figura 3 – Conjunto de ex-votos deteriorados, Ermida de Nossa Senhora do Carmo da Azaruja


Tal como considera Cambraia (2017: xiv), importa também aqui realçar o valor cultural e social do material escrito antigo:


[u]m dos aspectos mais fascinantes da história da cultura é o processo de sua transmissão através de textos escritos: esses registros, sujeitos às mais variadas adversidades (desde a fragilidade do próprio suporte físico até as acirradas censuras ideológicas), conseguem atravessar tempo e espaço, dando a conhecer hoje vivências do passado.


Assim, para além da necessidade de se preservar os ex-votos enquanto patrimônio, é preciso garantir a preservação e a difusão de um testemunho de língua do passado que esses objetos representam. Isso, porque, segundo Cohen (2017: 1), é necessário perceber “[...] que a língua contemporânea é o resultado de um longo processo histórico, que esconde, sob a aparente homogeneidade sincrônica atual, outras dimensões históricas”. Dessa forma, é incontestável que as línguas são um vetor fundamental da identidade coletiva;por isso, elas têm um indiscutível valor patrimonial. Justamente por isso, enquadramos os ex-votos no tripé do patrimônio material, imaterial e textual.


Por último, importa destacar que, conforme aponta Labov (1982: 45), quem trabalha em Linguística pratica “a arte de fazer um bom uso dos maus dados”. Isso porque, não há outra forma de se pesquisar um estágio pretérito de língua sem se voltar às fontes escritas (manuscritas ou impressas). Os dados extraídos das fontes manuscritas, contudo, são os dados possíveis, haja vista as limitações do suporte e da distância temporal. Dispomos hoje de muitos trabalhos que abordam questões relacionadas à Filologia, mostrando como os textos manuscritos – dos mais variados tipos – são fontes riquíssimas e inesgotáveis para as pesquisas diacrônicas.


[1] Optamos por transcrever o verbete tal qual está no original, ou seja, sem atualizações ortográficas e gramaticais.

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Referências bibliográficas:

BLUTEAU, R. (1721). Vocabulario Portuguez e Latino. Tomo VIII (T-Z). Lisboa: Officina de Pascoal da Sylva, 189 pp.

CAMBRAIA, C. N. (2017). Livro de Isaac. Edição crítica da tradução medieval portuguesa da obra de Isaac de Nínive. Belo Horizonte: Editora UFMG.

COHEN, M. A. A. de M. (2017). Ensaios de Linguística Histórica – Introdução. Belo Horizonte, Faculdade de Letras.

LABOV, W. (1982). “Building on empirical foundations”. In: LEHMANN, W.; MALKIEL, Y. (Eds.). Perspectives on historical linguistics. Amsterdam/Philadelphia: J. B. Publishing Company, pp. 17-92.

MONTEIRO, L. M. R. (2014). Ex-voto. Projeto (Mestrado em Comunicação Audiovisual). Porto: Departamento de Artes da Imagem, Escola Superior de Música Artes e Espectáculo.

*Marcus das Dores

Investigador de doutoramento em Linguística pela Universidade de Évora e em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP, Brasil).


Membro do Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS) da Universidade de Évora e da Cátedra UNESCO em Patrimônio Imaterial e Saber-Fazer Tradicional: Ligando Patrimônios. Possui mestrado em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, Brasil) e Licenciatura em Língua Portuguesa pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP, Brasil). É, também, editor-chefe da Revista LaborHistórico (UFRJ). Foi autor da proposta aprovada pela UNESCO de nominação do "Livro de Inventários da Catedral de Mariana" (1749-1904) ao Programa Memória do Mundo (MowBrasil/UNESCO). Desenvolve pesquisas que têm como foco fontes escritas (manuscritas e impressas) - legados textuais do passado à contemporaneidade - e as diversas marcas histórico-patrimoniais deixadas pelas mudanças sociais, incluindo, quer o patrimônio material quer o patrimônio imaterial, e, sobretudo, o patrimônio textual. Tem interesse, em maior ou menor nível, pelas seguintes áreas: linguística histórica e comparada, filologia, crítica textual, história da língua portuguesa, ensino de língua portuguesa, paleografia e conservação e restauro de bens materiais e imateriais.


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