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Orçamento de Estado e qualidade da democracia


Depois do programa de investidura, os Orçamentos de Estado constituem o principal requisito da sobrevivência política dos governos. Dá que pensar esta situação.


Teoricamente, as condições da governação deveriam decorrer sobretudo da aprovação de legislação estruturante, até mesmo para-constitucional, que os governos pudessem produzir, da avaliação do seu maior ou menor suporte parlamentar e, depois, da sua execução prática.


Sabemos, todavia, como o instrumento legal da moção de censura tem vindo a ser ferreamente disciplinado na maior parte dos ordenamentos jurídicos europeus, que em muitos casos obrigam revestir modalidade dita “construtiva”, quer dizer, apenas capaz de produzir efeitos em caso de poder ser gerada maioria alternativa. É o que se passa em Espanha, por exemplo. Entre nós não é (ainda) assim, mas já se evoluiu (ou antes regrediu) o suficiente para que os governos possam governar sem expressa aceitação parlamentar, bastando que as correlações de forças e circunstâncias do momento não favoreçam a apresentação de moções de rejeição e não havendo igualmente obrigação de apresentação de moções de confiança.


Diz-se que este tipo de soluções visam potenciar as condições de governabilidade, até mesmo a estabilidade dos regimes. Na verdade, elas constituem expedientes para dar resposta à crescente crise de representatividade parlamentar e à igualmente crescente dispersão das vontades populares por maior número de forças políticas, com ganhos importantes dos extremos dos espectros políticos, muitas vezes ditos “anti-sistémicos”.


Um dos poucos instrumentos de governação em que os artifícios da “governabilidade” têm tido maior dificuldade em encontrar formulações legais subtis é o da aprovação anual dos Orçamentos de Estado. Neste caso e como diz o povo, “ou sim, ou sopas”: ou se aprova, ou se rejeita. E isso conduz que à sua discussão quase se reduza aquilo que deveria ser a normalidade da vida política ao longo de todo o ano, a saber, a arte da negociação, a procura de pontos de convergência em função das correlações de forças de cada momento.


Ainda aqui, porém, a degradação democrática tem sido evidente. Primeiro, porque as referidas negociações se reduzem amiúde à barganha de pequenos ganhos, sem suporte em diferentes visões estratégicas da vida comum, senão mesmo à “pesca à linha” de deputados sensíveis a interesses muito particulares, seja o queijo produzido em certa região (no Lima, por exemplo), sejam os impostos não cobrados em zonas francas existentes noutras (na Madeira, por exemplo).

Os artifícios inventados para que os Orçamentos do Estado “passem” vão, porém, muito mais longe. Um deles é o da opacidade com que são apresentados: não somente o comum dos cidadãos não entende o que neles se propõe, como nem sequer os especialistas, e mormente os deputados que os são chamados a votar, os compreendem plenamente – isto porque neles não é expressa a exacta cobertura financeira para muitas das medidas que são anunciadas em sede de textos supostamente explicativos. Ocasionalmente, vai-se mesmo mais longe: inventa-se pura e simplesmente, produzem-se enquadramentos ficcionais.


De tudo isto existe em abundância no Orçamento de Estado para 2021, actualmente em discussão na Assembleia da República. O domínio do património cultural e museus demonstra-o paradigmaticamente, como se passa a exemplificar.


No domínio da opacidade e dissimulação, atente-se nesta informação prestada na chamada “nota explicativa” produzida pelo Ministério da Cultura: “Em 2021 será ainda aprovado o plano estratégico de atuação no âmbito da arqueologia, centrado em três temáticas: o plano nacional de trabalhos arqueológicos, a gestão dos espólios arqueológicos e os impactos negativos sobre o património arqueológico no âmbito das operações de agricultura intensiva, contando com um reforço orçamental no valor de 200 mil euros.”


É claro que o que de imediato mais chama a atenção é o valor verdadeiramente risível atribuído a este “plano estratégico”: 200 mil euros. O Sindicato dos Trabalhadores de Arqueologia teve ocasião de recordar que em 2002, último ano em que funcionou o Plano Nacional de Trabalhos Arqueológicos (uma das principais “conquistas” do sector durante o regime democrático, iniciada incipientemente ainda na década de 1970, mas depois melhor formulada em 1980, no quadro das consequência emergentes do IVº Congresso Nacional de Arqueologia), o mesmo estava dotado em verba que a preços actuais deveria corresponder a 800 mil euros! Mas, após o primeiro choque, pergunta-se onde nos quadros de receitas e despesas do Orçamento de Estado figura esta verba de 200 mil euros? E a resposta é que não consta, melhor, não se sabe.


O mesmo se passa em numerosas outras medidas concretas anunciadas, em todas as áreas da governação: opacidade e dissimulação constituem expedientes que visam potencializar a aprovação dos orçamentos, ou seja, a “governabilidade”.


Trata-se ainda assim de subterfúgios às vezes insuficientes. E, quando necessário, recorre-se a outro mais criativo: a pura e simples construção de quadros ficcionais. Também aqui o sector do património cultural e museus encontra-se “bem servido” no Orçamento de Estado para 2021, porque nele se considera que a receita de monumentos, palácios e museus seguirá o ritmo normal de crescimento que estava previsto no OE de 2020, elaborado e aprovado em 2019, ou seja, antes da pandemia em que ainda vivemos.


Chamei a atenção recentemente para este autêntico ludíbrio. Mas nunca é demais sublinhá-lo. Atente-se no quadro junto, que indicada os valores previstos em ambos os casos (OE 2020 e OE 2021). Verifica-se que a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) é dotada em 2021, para actividades, com 51 milhões (o que significa um aumento nominal de 4 milhões em relação a 2020). Mas destes, mais de metade (28 milhões) serão receitas próprias (e destas, 26 milhões de bilheteira e pouco mais). Ora, observando o OE de 2020, rapidamente se conclui que as receitas próprias aí estimadas eram até inferiores. Quer dizer: prevê-se que em 2021 haja receita maior do que se previa em 2019 ir a ocorrer em 2020! Bem pode o actual director-geral do Património Cultural chamar a atenção, e lamentar (Público 23.9.2020), que a receita daquele organismo tenha sido reduzida em 2020 para menos de um terço da prevista antes da pandemia, percentagem que tinha sido projectada para 2021 teria os efeitos que se expressam no gráfico circular junto. O MC e o Governo ficcionam que nada aconteceu ou acontecerá e quer até fazer-nos acreditar que a receita crescerá em 2021.


Trata-se de ficção pura e dura. E causa profunda estranheza (ou talvez não…) que nem deputados, nem órgãos de comunicação social saibam, estejam em condições ou simplesmente se apercebam e denunciem tal ficção. No caso dos deputados, um deles, Ana Mesquita (PCP), honra lhe seja feita, perguntou à ministra como era possível tal previsão de receita. A resposta foi a que se seguem aqui as simulações macro-económicas do Governo. E pronto: mais não se discutiu, como se estivéssemos perante alguma revelação esotérica, que não cumpre questionar. No caso os jornais, a situação ainda é pior. Atentas às notícias do dia seguinte, referentes à audição parlamentar da ministra da Cultura (cf. montagem de títulos junta), nenhuma, nenhuma mesmo, refere a pergunta e a resposta, omitindo por completo a chocante previsão de receitas que jamais existirão.



Poderão até existir razões racionais para a ficção indicada. Pode por exemplo argumentar-se que visa ela garantir (ainda que somente no papel) condições de receita que permitam à DGPC manter capacidade de execução orçamental com alguma autonomia relativamente ao controlo das Finanças. É assim como dizer que se trata de “mentira piedosa” – inaceitável, mas ainda assim inteligível. Mas nem isso foi feito, talvez porque a ninguém interessa fazê-lo. Todos, governantes, dirigentes da Administração Pública e jornalistas, todos parecem contentar-se com jogos de aparência. E os deputados, os poucos que ousam denunciá-lo, encontram-se manietados por regimento que lhes impossibilita aprofundar as matérias (isto quando não estão, eles também, tomados pelo interesse em “fazer vista grossa”).


Tudo somado, o que resulta, e resulta especialmente no caso de exercícios ficcionais como o indicado, é a degradação da qualidade da democracia. Não se estranhe por isso que os extremos ditos “anti-sistémicos” cavalguem depois estas distopias, bradando que “são todos iguais” e indo buscar ao cotão que guardam nos bolsos as respostas fácies que alimentamos populismos. Já vimos e, pior, já nossos pais e avós viveram esse filme no passado, com resultados catastróficos. Será que o vamos repetir?



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