Uma pergunta que nos inquietava há vários anos como programadores(as) de uma instituição cultural era: porque não nos visita o público jovem?
E como todos os desafios ou aventuras começam com uma pergunta tinha chegado a hora de ir à descoberta da resposta e procurar formas possíveis de reverter essa situação. Para isso contámos com a alavanca de estarmos envolvidos num projeto europeu, o ADESTE+ (Audience DEvelopment STrategies for cultural organisations in Europe), um projeto de cooperação europeia em larga escala destinado a expandir a participação cultural, repensar o papel das audiências e a promover a mudança organizacional. Com o trabalho em equipa alargada entre os serviços educativos dos departamentos da música, jardim e museu e as mesmas inquietações para responder avançámos juntos rumo ao desconhecido.
Da nossa experiência os jovens não tendem a escolher vir à Fundação [Calouste Gulbenkian] de moto próprio, frequentam-na em grupo escolar, trazidos por outros e por razões e decisões em que na maioria das vezes não participam. Individualmente não a veem como um espaço relevante na sua geografia cultural, percecionando-a como mais vocacionada para gerações mais velhas e com pouca oferta cultural que lhes seja dirigida. O que não deixa de ser curioso…uma vez que se trata de um espaço com uma ampla oferta e propostas culturais que assentam num rico e diversificado património.
Então onde está a origem desta clivagem? Seria apenas uma questão de perceção?
Para responder a esta dúvida, e numa abordagem interdepartamental que juntava os educativos da Música, Jardim e Museu, inscrevemos no projeto ADESTE+ esta vontade, tornando os jovens o público-alvo a abordar e o projeto Gulbenkian 15-25 Imagina como o protótipo a testar.
Interessava-nos sobretudo escutar e pensar em conjunto, abrindo para isso a possibilidade de um espaço experimental de co-programação que ajudasse a materializar as suas ideias e contributos: O que é programar? Que programação frequentam e porquê? O que os faria fazer da Fundação um desses espaços e como? Se ocupassem o lugar de programadores o que proporiam?
Para isso foi lançado um open call para jovens entre os 18 e 25 anos convidando à participação numa experiência de co-programação cultural, ao longo de 6 meses, a partir da qual se constituiu um grupo muito diverso de 21 participantes com origens, formações e interesses distintos.
O projeto Gulbenkian 15-25 Imagina decorreu no primeiro semestre de 2020 e organizou-se em diferentes fases: auscultação e formação (um primeiro momento dedicado a pensarmos em conjunto e a darmos a conhecer o que está por trás da ideia e prática de programação); ideação e produção (um segundo momento em que o coletivo desenhava nova programação com os seus pares como público alvo); realização e implementação (momento em que a programação efetivamente se realizava com público); balanço e registo (momento de fecho com as linhas mestras e principais ideias/mudanças a reter do processo).
Ao longo de todas as fases foi notória a entrega e o espírito criativo e crítico do grupo. A programação foi vista como um espaço de possibilidades mas sobretudo de intervenção, um espaço para ter voz, para refletir o (e sobre) o mundo em que vivemos e que desejamos. Às perguntas - o que é programar? O que é programar para e com público jovem? – não surgiram apenas respostas sob a forma de eventos, concertos, artistas escolhidos ou a escolher. As respostas principais foram nas ideias e nos conceitos. Programar é responder ao mundo, é propor, é alertar, é romper barreiras. Nas propostas de programação que apresentaram, eram bem audíveis as suas preocupações e prioridades sobre os contextos atuais e pensamentos sobre o tempo do aqui e agora: sexualidades dissidentes, identidades não binárias, questões coloniais e racismo.
Daqui resultou um conjunto extenso de ideias de programação desenhada, com diferentes expressões no campo da música, dança, performance, happening, teatro, moda, e outros Uma proposta que nos desafiava a todos na tentativa de encontrar os espaços de cruzamento que permitiam cruzar estas vontades com a identidade da instituição e a natureza da sua programação, o seu património artístico e cultural, o seu ADN.
Estávamos justamente nesta fase de cruzamento de vontades quando os efeitos da pandemia levaram à suspensão das atividades e fecho dos espaços.
Esta paragem funcionou no entanto como uma oportunidade. O processo estava feito, as ideias estavam no draft de programação em cima da mesa, as propostas de reflexão era evidentes. A paragem serviu então para parar, repensar, repensarmo-nos e reinventar o processo sem perder o caminho já feito nem a vontade de continuar juntos uma proposta de pensamento e de mudança que estava já em curso.
O tempo do confinamento foi usado para aprofundar uma serie de reflexões sobre os temas já identificados: identidade, identidades não normativas, invisibilidades, ligação ciência, tecnologia e arte, videovigilância digital, intervenção e ativismo, artivismo, resistência, aliadas a novos temas como mudança e pandemia.
A programação perdeu a dimensão inicial mas ganhou em foco e materializou-se num ciclo de Conversas em formato digital: Programa Imagina: pensar o futuro Agora!
Conversas concebidas e inteiramente orientadas pelos jovens, que assumiam o formato de debates informais, com pequenos painéis de convidados definidos por eles, em torno de questões chave que nasceram do programa original:
Conversa 1 – Os espaços determinam os corpos que os habitam? Os corpos determinam os espaços em que habitam?
Conversa 2 – Invisibilidades: as ruas e o digital como espaços de manifestação e expressão democrática
Conversa 3 – Arte, tecnologia e vigilância – se a arte é um gesto de resistência, a que resiste?
Este programa de conversas permitiu concretizar todas as fases do processo original: escutar, debater, idear, produzir, realizar e avaliar, mostrando como o coletivo ocupou o lugar do programador como um ato de intervenção e ação consequente e transformador.
O Imagina foi um auscultar de intenções, uma procura de soluções e um abrir de portas para uma forma de trabalhar em parceria com os públicos, com e não para. Um tempo e espaço de ouvir e de dar voz, de dar o poder de decisão o outros que não só os programadores habituais, de aprendizagem partilhada num caminho conquistado juntos.
Dele ficam muitas coisas por fazer mas ficam também muitas sementes a germinar, que irão encontrar terrenos novos onde se afirmar e a certeza da importância de trazermos novas vozes e novos discursos para dentro das instituições culturais, e de, criar espaços de partilha que venham a criar novas formas de programar e de tornar estes locais significativos, vivos, pulsantes e interessantes para as gerações do agora e do futuro. Para que o património cultural e artístico continue a ser usufruído, experimentado e vivido.
Nas palavras destes jovens, “o Imagina deixa muito claro a necessidade de as instituições terem de mudar, terem de ser mais disponíveis, mais acessíveis, e terem de abordar assuntos prementes e urgentes sem medos, porque não sabemos o que é programar se não soubermos o que está do outro lado do que nós nunca vimos” [1]. Têm de assumir que o risco é um fator fundamental para uma mudança de paradigma e de criar espaços de flexibilidade onde a zona de negociação é muito maior do que a atual.
“Colocar o público no centro da equação, não só como destinatário mas também como decisor, com voz e com poder para tomar também decisões é no momento atual de suma importância, é importante e relevante ouvir os outros, as pessoas para quem programamos e fazer com eles esta programação, de forma a que seja significativa e desejada para quem queremos que nos visite”.[2]
Projetos como o Imagina afirmam-se como exemplos recentes que mostram que os processos participativos implicam sempre uma noção de mudança e a criação de espaço para que as mudanças ocorram e que possam ser acolhidas e abraçadas.
Ficam perguntas no ar com espaço para revisitações, novos caminhos e indagações, porque uma pergunta nunca vem só, e um bom desafio leva sempre a outro e uma programação torna-se pertinente e acessível quanto espelha diferentes perspetivas do que está acontecer no mundo.
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