À luz de uma ética de amor, ao pensarmos na mudança do mundo, teremos, necessariamente, de pensar na mudança de nós mesmos. Ou seja, do museu. 1
Pensar o museu como um espaço de relação com o mundo estabelecendo laços fortes com as comunidades em que se insere tem levantado diversas questões sobre o tipo de resposta ou apoio que estas instituições podem, e/ou, devem prestar nas questões de saúde e bem-estar das comunidades que servem.2
Um dos primeiros gestos de um museu que se quer cuidador é o de ir ao encontro. Nesse encontro o cuidar pode assumir diferentes formas, mas que partem todas da atenção, da disponibilidade, da escuta e dos afetos. Procurar o outro e ir ao seu encontro é um pequeno gesto de mudança que potencia transformações internas (no museu) e externas (na comunidade em que se insere). É neste posicionamento, que os museus vão procurando preencher um lugar no mundo que tem um propósito social3, assumindo-se como fonte de inspiração, de educação, de informação – promovendo a criatividade, ampliando horizontes e proporcionando exposição a novas formas de ver o mundo3 e de estar no mundo, contribuindo para a inclusão social .3
E foi com estas premissas presentes que se construiu o projeto que aqui se partilha, uma iniciativa que foi crescendo e consolidando os seus gestos de cuidado até se transformar numa programação educativa sólida e regular.
Quando os alunos não podem ir ao museu, o museu pode ir ao seu encontro. Nestes encontros, que acontecem fora de portas e do habitual espaço artístico das galerias, não há razão para que os processos não assentem nas mesmas premissas - parte-se da obra de arte e dos modos de fazer artísticos para gerar momentos de surpresa, de descoberta e de reflexão.
Começando a contar esta estória do início, foi com entusiasmo e surpresa que, em 2017, tomámos contacto com as escolas que dentro dos hospitais acompanham crianças e jovens que tenham de permanecer internados por períodos mais ou menos longos, pelas mais diversas razões, permitindo-lhes assim continuar o seu percurso escolar com o apoio personalizado de que necessitam.
Este contacto chegou sob a forma de convite de duas professoras de duas instituições diferentes – Hospital D. Estefânia e Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão – com o desafio para criarmos propostas que fossem um complemento educativo ao trabalho letivo. Foi um convite que abriu a porta para a criação de uma abordagem educativa que se foi tornando cada vez mais importante numa área de programação que é normalmente invisível - os projetos. Trata-se de uma programação desenhada à medida em cada ano letivo, que cria com amor e carinho, há já sete anos, experiências personalizadas para os(as) alunos(as), de acordo com os temas que a escola do hospital esteja a trabalhar. Aposta na potenciação de aprendizagens que partem sempre dos processos artísticos e acontecem de forma lúdica e bem-disposta procurando promover novos olhares sobre as matérias curriculares ou introduzir novos temas ou relações interdisciplinares e transdisciplinares.
Nestas propostas, pretende-se que no tempo partilhado, se possam colocar as dificuldades e problemas de parte vivendo intensamente momentos de aprendizagem descontraídos em que se envolvem alunos, pais e professoras, quebrando rotinas e potenciando experiências significativas e felizes.
Para isto ser possível entram em ação ferramentas educativas e artísticas conjugadas com o fator surpresa, ou efeito uau, com que as propostas são cuidadosamente pensadas por todas as equipas envolvidas.
Foi assim que nasceu, passo a passo e ano após ano, o projeto Gulbenkian no Hospital, uma área de trabalho iniciada no Serviço Educativo do Centro de Arte Moderna Gulbenkian (CAM) e que atualmente cruza três setores de educação - Museu Gulbenkian e Jardim Gulbenkian - colaborando com as escolas dos hospitais do D. Estefânia, Stª Maria, IPO, CMR do Alcoitão e Garcia da Orta, numa relação de proximidade e cuidado.
Trata-se de um complemento de formação que promove o contato com o património das coleções do CAM e Museu Gulbenkian e o património natural do Jardim. Propõe atividades diversas adaptadas ao contexto e aos grupos de alunos residentes sob a forma de oficinas criativas, visitas* com forte componente prática e de experimentação ou atividades performativas como histórias encenadas ou vídeos – estas adaptadas da programação educativa regular e trabalhadas de forma a servirem as características específicas dos públicos de cada unidade hospitalar. O publico alvo é sempre diverso, muito heterogéneo, do pré-escolar ao secundário, com as mais diversas necessidades específicas.
No presente ano o projeto articula seis propostas educativas diferentes tendo como fio condutor a ideia de ligação entre Arte e Natureza, elencadas com as questões da sustentabilidade e cidadania, a partir do património artístico e cultural de referência de cada área educativa (CAM, MCG, Jardim), incidindo sobre objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)4 e promovendo o pensamento critico e criativo a partir do lugar da educação artística.
Cada atividade tem a duração de 1h a 2h, dependendo da disponibilidade de cada escola, e é pensada para ser autónoma e expressiva por si mesma, mas também para funcionar dentro do encadeamento proposto, funcionando como um percurso, uma proposta educativa mais completa, que não obstante tem o poder de se adaptar o mais possível à realidade dos hospitais, que têm ritmos diferentes entre si e onde as necessidades de acompanhamento e tratamento dos alunos faz com que os grupos sejam muito flutuantes (ex. ter alunos sempre diferentes de sessão para sessão ou ter alguns que acompanham todas as seis dependendo do tempo de internamento e do tipo de tratamento de cada um).
Como ponto em comum, a imaginação, a transformação, a criatividade e o potencial da surpresa conjugam-se num Lugar do Cuidar onde a “educação” assenta em formas de partilha, de criação coletiva, de socialização e expressão, de inclusão e promoção da autoconfiança e autoestima, contribuindo assim para o equilíbrio, a saúde mental e bem-estar emocional dos alunos e seus cuidadores. Numa ideia de pedagogia do amor – como nos apresenta Paulo Freire – a relação pedagógica é estabelecida através dos nossos compromissos sociais mais profundos e das relações de solidariedade e cooperação com outros (alunos(as), pais, mães, professoras, colegas) e é nesta prática que se reforça a nossa humanidade e a nossa existência como sujeitos plenos no mundo.5
Acreditamos que este tipo de projetos, que são implementados de forma regular e sistémica podem produzir, além dos resultados educativos expectáveis (contato com obras de arte, processos de interpretação e leitura artística, aquisição de competências técnicas, domínio sobre materiais e técnicas, entre outros), o desenvolvimento de outros menos previsíveis mas que são tão ou mais importantes e que se prendem com as relações pessoais e interpessoais, as necessidades sociais e emocionais que se medem em sorrisos, desabafos, confidências, lágrimas, risos e abraços.
E estas são ferramentas de trabalho emocionais com que lidamos no meio das outras, as da educação e criação artísticas, e que conjugadas com cuidado e atenção podem de fato ser fatores de transformação positiva pelo menos nos momentos vividos conjuntamente e desejavelmente nos momentos que se seguem nas vidas de todos os intervenientes.
Um dos medidores de sucesso deste projeto é o interesse continuado por parte das professoras, ano após ano, e o carinho com que nos acolhem, o interesse e motivação das equipas em continuar a desenvolver este trabalho, exigente e desafiante, e o envolvimento dos(as) alunos(as), que por vezes acompanhamos por mais de um ano, e em quem vemos o entusiasmo com que nos recebem e o empenho colocado nas respostas às propostas que criamos para eles(as).
Gulbenkian no hospital, com os seus diferentes parceiros e dinâmicas, cria uma comunidade educativa diferente, baseada no encontro, no cuidado, no amor, na participação cultural e na solidariedade social.
Completando a ideia de David Fleming, se a educação está no coração dos museus6, é a relação e o amor que são o centro desse coração.
Andreia Dias, maio 2024
*Durante a todo o período da pandemia covid-19 as atividades continuaram a realizar-se em formato online
1 SEMEDO, A. (2023). Por amor do mundo: rumo ao museu amans. p.156 https://scholar.google.com.br/scholar?hl=pt-PT&as_sdt=0%2C5&q=por+amor+do+mundo+semedo&btnG=
2 DODD, J. & JONES, C. (2014). Mind, body, spirit: How museums impact health and wellbeing. Research Centre for Museums and Galleries. p.12
3 DOOD, J. & SANDELL, R. (2001). Including Museuns. Perspectives on museums, galleries and social inclusion. Research Centre for Museums and Galleries. p15
4 Objetivos de Desenvolvimento Sutentável. https://ods.pt/
5 DARDER, A. (2002). Reiventing Paulo Freire. A pedagogy of love. Westview Press. p.89
6 VISSER, J. (2016) In Conversation With David Fleming, 26 de abril 2016. https://www.museumnext.com/article/david-fleming-museum-director/
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