Helena Martelo
O entusiasmo era muito grande quando terminámos, em outubro de 2019, a escola internacional Museums and Stereotypes. Durante quatro dias, apropriámo-nos de diversos espaços culturais na cidade de Milão, como o Museo del Novecento e o Museo della Scienza e Tecnologia “Leonardo da Vinci”, nos quais refletimos sobre estereótipos, museus e projetos colaborativos comunitários.
Museums and Stereotypes aconteceu num tempo onde era impensável imaginar que os museus fechariam as portas durante semanas e que o distanciamento social seria uma das condições para a sua reabertura. Foi, precisamente, a possibilidade de habitar fisicamente diferentes espaços e de contactar com participantes internacionais que permitiu experienciar os museus enquanto laboratórios vivos de reflexão e de debate.
O debate sobre estereótipos remeteu-nos para as perceções, as crenças e as expetativas generalizadas, associadas ao preconceito e à discriminação em relação a membros de determinados grupos. O grande desafio que se coloca aos museus, enquanto espaços públicos de mediação cultural e social, é apresentarem-se como instituições seguras e disponíveis para a construção de uma partilha de saberes com as comunidades que habitam o seu território.
Ao falarmos dos museus enquanto espaços acessíveis e inclusivos, onde cada um tem a oportunidade de participar livremente em projetos colaborativos democráticos, recordei-me da esfera pública de Jürgen Harbermas. No entanto, como Jennifer Barret refere no livro Museums and the Public Sphere, a génese de uma esfera pública envolve trocas e negociações complexas entre diferentes formas de comunicação e práticas de estar em público.
O exercício de mediação que os museus fazem com os seus públicos foi-nos apresentado pela gestora de diversidade no Rautenstrauch-Joest-Museum, Aurora Rodonó, filha de imigrantes italianos na Alemanha que desenvolve o seu trabalho de investigação em torno da questão “Como descolonizar museus etnográficos?”. Na sua perspetiva, os museus têm de repensar os métodos e os processos para se transformarem em fóruns democráticos de discussão transcultural, onde as histórias dos objetos são comunicadas com uma nova linguagem, refletindo as alterações geopolíticas e sociais contemporâneas.
Dessa forma, o espaço físico do Rautenstrauch-Joest-Museum foi repensado para ser um ponto de encontro aberto à discussão e à reflexão, onde são feitas perguntas e onde se procuram respostas. O futuro do museu é projetado em conjunto, num processo dinâmico que se desenvolve a cada passo, mudando de aparência e de forma. O museu transforma-se num palco para negociar questões relevantes e atuais, com o objetivo de refletir a diversidade e onde todos são convidados a partilhar a sua história.
É através da introdução de novos processos participativos nos espaços culturais que se desenvolve um pensamento crítico e que se constrói a confiança com os membros da comunidade. O livro Memórias da Plantação é uma referência no trabalho que Aurora Rodonó desenvolve em torno da questão “Como descolonizar museus etnográficos?”. Grada Kilomba, autora deste livro, reflete sobre a necessidade de aprender a ver com “novos olhos” e a entrar «na luta como sujeitos e não como objetos»: poder falar quando a voz é ouvida, reconhecer que quem é ouvido pertence e quem não é ouvido não pertence.
Com efeito, é a possibilidade de diálogo entre o museu e a comunidade que permite ao Danish Welfare Museum explorar as diferentes perspetivas histórias do Estado-Social na Dinamarca, através de relatos pessoais. Como forma de ativismo, é utilizada uma metodologia de investigação aberta aos cidadãos, por oposição a um trabalho tradicionalmente desenvolvido e monopolizado pelo museu, como nos explicou, na sua apresentação, Sarah Smed, diretora do museu.
O Danish Welfare Museum incita a uma mudança social que desafia estereótipos, convidando a participação ativa de grupos periféricos da sociedade, como “peritos alternativos”. Estes pesquisam na coleção de arquivos do museu as histórias de pessoas institucionalizadas, fazendo ligações com a sua própria experiência, para compreender o seu passado e fortalecer o seu presente. A experiência presencial no museu é essencial para o desenvolvimento de um trabalho identitário e de apropriação do espaço. Para Sarah Smed, este trabalho com a comunidade assume uma maior importância do que a mera contabilização de visitantes.
Ambicionando uma mudança de paradigma, que proporciona a quem esteve institucionalizado a experiência de ser ouvido, conhecido e levado a sério, o museu cria, com as comunidades que representa, novas narrativas. Para estas pessoas, a possibilidade de pesquisar o seu passado nos registos governamentais do museu constitui uma experiência emocional muito forte, quase catártica. Também por essa via, o museu assume relevância na melhoria da qualidade de vida dos membros da comunidade.
Se a experiência no espaço físico dos museus é fundamental, a criação de comunidades online, como locais de encontro e de partilha de assuntos transversais à sociedade, não pode ser menosprezada. Anna Chiara Cimoli, docente na Universidade Estatal de Milão e associada da cooperativa social ABCittà, uma das entidades que organiza o curso internacional Museums and Stereotypes, falou-nos sobre o blogue museums and migration, dinamizado por si e pela Maria Vlachou, diretora executiva da associação Acesso Cultura, onde são disponibilizados artigos relativos à migração e aos refugiados, questionando o papel dos museus, o seu ativismo ou o seu silêncio.
As questões relacionadas com as migrações preocupam muitos museus e instituições culturais, que procuram responder com abordagens inovadoras para fomentar a cooperação e o diálogo. A migração é um fenómeno recorrente na nossa história e está presente nos objetos e nas coleções de muitos museus. Outros museus dedicam-se ao estudo das questões que levam à migração e às dificuldades que os migrantes enfrentam, desenvolvendo projetos participativos com estas comunidades, muitas vezes marginalizadas nas sociedades de acolhimento. Os espaços culturais têm como responsabilidade coletiva serem, por um lado, socialmente conscientes e, por outro, locais de inovação social.
Na desconstrução de estereótipos, é fundamental envolver diversas entidades e criar redes de cooperação. A organização e a curadoria da programação do Museums and Stereotypes é feita por entidades que trabalham no terreno com os grupos desfavorecidos, em parceria com diversos espaços culturais locais, reconhecendo e validando a sua dimensão social: a ABCittà, organização sem fins lucrativos sediada em Milão, tem desenvolvido nos últimos anos um vasto trabalho relacionado com as audiências em termos de acessibilidade, inclusão e interpretação; a 4iS – Plataforma para a Inovação Social, organização não governamental sediada na Universidade de Aveiro, desenvolve projetos comunitários que criam valor social e cultural.
O confinamento a que todos nós fomos sujeitos nos últimos dois meses, causado pela pandemia COVID-19, deu origem a novos estereótipos. Uma forma de tornar válida e concretizar a reflexão da escola internacional Museums and Stereotypes, neste momento de transformação dos museus, seria debatermos e encontramos respostas em conjunto. Que museus seremos no futuro? Como reafirmar o papel social e cultural dos museus em tempo de pandemia? Como os museus estão a ajudar as comunidades locais afetadas pela COVID-19? No futuro como encontrar o equilíbrio entre o digital e o presencial para o envolvimento das comunidades? Como manter os novos públicos que surgiram nos canais digitais em tempo de pandemia? Por que não são dinamizados encontros com as comunidades nas redes sociais para debater o futuro dos museus?
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