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Les jeux sont faits



Depois de três meses com sucessivas intervenções em espaço púbico [i], foram enfim publicados os decretos-leis que dão corpo à nova organização administrativa central do Património Cultural e dos Museus. Em poucos meses, procedeu-se ao que ouso considerar ser a mais profunda (diria mesmo revolucionária) reestruturação destes sectores, aliás, em articulação com um “processo de regionalização” camuflado, pela instituição e ampla transferência de competências para a Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (as CCDR).


Tendo em conta a profundidade de reforma, tudo se passou demasiado depressa e, o que é pior, sem a devida preparação e discussão públicas. Apenas no sector dos museus houve estudos de diagnóstico aprofundado nos últimos anos e, pelo que se sabe, foram ouvidas duas associações (ICOM.PT e APOM) antes das soluções que vieram a ser adoptadas em primeira leitura num Conselho de Ministros de 22 de Junho, seguida de um exercício de consulta dos sectores envolvidos, a qual teve alguma (pouca) tradução na versão final fixada 27 de Julho, ou seja pouco mais de um mês depois. Assim, há antes de tudo que reclamar pela falta de cultura democrática patente em todo este processo. Na área da arqueologia, por exemplo, chegou-se a criar um grupo de trabalho e este chegou a pedir contributos aos profissionais, mas… tudo acabou antes de se ter chegado a qualquer conclusão – e mesmo se esta viesse, não resultaria de auscultação e formação de opinião verdadeiramente democráticas, porque o dito grupo de trabalho já não o era, na origem.


De tudo um pouco se disse nestes três meses febris.


Para uns, o que se vai executar constitui uma "desestruturação", a bem dizer, uma catástrofe anunciada; reconhecendo embora que "ao longo dos últimos anos não existiu uma estratégia clara para o setor e investimentos destinados a travar o que já entrara em colapso", alguns colegas que muito respeito e com quem estou em geral de acordo pretendiam que se mantivesse o sistema de tudo concentrado na Cultura (sem quaisquer transferência de competências para as CCDR) e, se possível, com as DRC ou até com delegações regionais do serviço central, para reforçar a coesão das políticas.


Para outros, sobretudo dirigentes das CCDR e autarcas eleitos, o que ficou por fazer foi a total transferência de competências para as CCDR, que, como eu assinalei no meu texto logo que se soube do que fora aprovado em Conselho de Ministros, "apenas" recebem a fava dos processos burocráticos de licenciamento (a menos que seja isso que realmente querem...) e não os proveitos que podem decorrer (em verbas e prestígio publico) da gestão de monumentos e museus.


Não concordo nem com uns nem com outros. Entendo que a reforma agora concretizada é mais positiva do que negativa e deve por isso merecer o benefício da dúvida. É certo que não o digo hoje com a mesma confiança que utilizei no meu texto de opinião no Público acima referido, escrito no imediato rescaldo da notícia da aprovação inicial dos decretos-lei ("Agora é que vai ser?", em 29 de Junho). Mas mantenho a minha avaliação.


Dispenso-me de repetir aqui os argumentos que dão corpo à minha positividade. Em duas palavras, diria que ao reconhecimento do “colapso” da estrutura anterior se junta em mim a convicção de que a administração pública se exerce tanto melhor quanto mais próxima das pessoas estiver, sendo o Poder Local uma das conquista da Democracia de Abril e faltando cumprir o ditame constitucional da Regionalização. Fiz toda a minha carreira profissional dentro da administração central do Estado, defendo a existência de políticas públicas nacionais, desconfio da promiscuidade entre interesses incompatíveis que pode ocorrer mais facilmente a nível local ou regional, reconheço corrupções e nepotismos… mas considero por outro lado que todo o caminho se faz caminhando e que nunca, em tempo algum, foi fecundo querer congelar o tempo, quando o que está em causa é a promoção da maior emancipação e qualidade de vida do povo, condições que antes de tudo se sentem e vêm a nível local.


Dito isto, é certo que vislumbro no novo modelo organizativo diversas lacunas ou ambiguidades, que se podem traduzir em situações inaceitáveis. Alguns exemplos:

  • o destino final dos museus regionais e em geral do nível regional da administração de monumentos e museus (que não vejo mal poder a seu tempo ser confiado às CCDR); a extinção das DRC e a desconfiança quanto às CCDR levou a esta situação bizarra, que talvez só o tempo permita ultrapassar;

  • a revisão da orgânica interna das CCDR para incluir departamentos próprios de património cultural e conselhos consultivos com participação maioritária da "sociedade civil" do sector em cada região;

  • a insuficiente capacidade do Ministério da Cultura Estado em efectivamente concretizar as políticas patrimoniais nacionais, atenta a autonomia das CCDR e a sua inserção orgânica noutro ministério;

  • as entropias burocrático-administrativas decorrentes desta situação (se já do antecedente as relações entre DGPC e DRC nem sempre foram as melhores e apenas se normalizaram devido à subordinação e uma mesma hierarquia, imagine-se o que poderá suceder a partir de agora);

  • a clarificação das relações entre os novos conselhos consultivos da EPE e do IP e as secções correspondentes do Conselho Nacional de Cultura;

  • a maior garantia da autonomia dos directores de museus da EPE, com definição de critérios de selecção e limitação de mandatos

  • o papel porventura impróprio de mecenas endinheirados na definição das políticas públicas dos museus e, em geral, o perigo de uma mercantilização excessiva da gestão de museus e monumentos;

  • a entrega da definição desta políticas nacionais a entidade empresarial, ainda que pública, que deveria limitar-se à gestão dos museus e monumentos que lhe foram afectos.

Sobretudo inquieta-me o caso da arqueologia. Trata-se um património com especial tutela legal, a ponto de ser o único que requer autorização central para trabalhos de campo; mas é também um património quase todo não classificado e por isso fora do radar do novo IP. Existe aqui um potencial terreno fértil para todo o tipo de desmandos: basta que a nível regional se entenda que não é preciso fazer trabalhos de campo que requeiram autorização central, para que todo e qualquer olival intensivo possa ir por diante, apenas com autorização da CCDR, onde não é preciso ser génio para vislumbrar conflitos de interesses entre raposas e galinheiros.


No entretanto, há uma dimensão desta reforma que não vi ninguém referir e a que atribuo grande importância, precisamente porque o plano em que me situo é muito mais o da cidadania do que o do funcionário público do sector. Refiro-me à participação da (mal) chamada “sociedade civil” na definição das políticas do património cultural e dos museus.


Vai fazer uma década que, quando se fixou a estrutura que agora chega ao fim, escrevi texto intitulado “Retórica e realidade: a governamentalização do Conselho Nacional de Cultura” (Público, 20 11 2013, ver aqui: https://www.publico.pt/2013/11/20/culturaipsilon/opiniao/retorica-e-realidade-a-governamentalizacao-do-conselho-nacional-de-cultura-1613083). Nele começava por afirmar:


“Existe uma doença que corrói as democracias contemporâneas: a crescente desconfiança com que os cidadãos olham a polis, da qual se alheiam cada vez mais. A governação, em particular, encontra-se quase em roda livre, posto que nem os programas eleitorais, de resto vácuos, são para levar a sério, nem o controlo parlamentar cumpre eficazmente a sua função, seja porque a chicana partidária o impede, seja porque não dispõe da suficiente preparação técnica. Uma das modalidades pelas quais os Estados modernos têm procurado mitigar este mal é a criação de organismos tecnicamente competentes e socialmente representativos, capazes de fazer reflectir o sentimento dos cidadãos junto dos diferentes órgãos do poder – e desde logo junto da governação corrente. Em Portugal, esta via, ainda muito incipiente e imperfeita, tem vindo a ser prosseguida pelos chamados "conselhos nacionais", em grande parte de iniciativa parlamentar. Eles existem já em áreas como a Educação, a Juventude, a Justiça ou até a Ética para as Ciências da Vida, só para dar alguns exemplos.”


Analisava depois a composição das diferentes secções do Conselho Nacional de Cultura (CNC), tanto na inicial versão de 2007 como na de 2013, e concluía:


“O CNC, tanto na sua anterior versão como mais ainda na actual, constitui a maior prova do imenso fosso que separa retórica e realidade, nisto juntando, em graus diversos é certo, mas sempre para mal das nossas democracias, agentes políticos de orientações diversas, porém, todos responsáveis pelo seu isolamento, assim como o da governação, que vão alternadamente assegurando. Mas, sendo assim, é igualmente mister reconhecer que os cidadãos talvez tenham o que merecem, como decorre do silêncio quase total (salvo no caso do cinema) com que esta matéria do CNC tem sido acolhida, porventura na esperança de que as costas folguem, entre vindas e idas do pau, e algumas migalhas acabem sempre por sobrar para quem se saiba posicionar, gerindo habilidosamente silêncios.”


A acompanhar este texto era apresentado um gráfico com a composição das secções do CNC, em 2007 e 2013, de acordo com as seguintes categorias de membros: Estado Central (por inerência de funções de chefia), Estado Regional (por nomeação dos respectivos governos regionais), Estado Local (representação da Associação Nacional de Municípios Portugueses). Nomeados (por decisão discricionária do membro do governo da Cultura) e Independentes (representantes de entidades sem vinculação hierárquica ao Estado). Tratava-se de quadro muito elucidativo, que comentei assim:


“O CNC de 2013 consegue a proeza de ser mais governamental do que o anterior. Em quase todas as secções diminui, em termos relativos, a componente representativa independente, aumenta a de altos funcionários, assim como a de “individualidades” nomeadas (de que não se contesta a idoneidade, nem a eventual independência, porém, subjectiva). Na versão actual apenas a secção de Cinema continua a possuir mais de metade de conselheiros independentes, que ainda assim foram significativamente reduzidos. Secções como a do Livro e a dos Museus foram profundamente alteradas nos seus equilíbrios, passando os representantes autónomos a constituir menos de um terço dos membros e ficando assim impedidos de, por si mesmos, suscitarem a discussão das matérias que entendem, em reuniões convocadas expressamente para o efeito. Apenas na secção de Arquivos houve alteração inversa, com significativo reforço da componente independente. E na de Património Arquitectónico e Arqueológico inclui-se finalmente um representante do Icomos Portugal, mas mantém-se a composição geral profundamente autocrático, não se tendo sequer aproveitado para corrigir o escândalo da falta de representação das duas mais respeitáveis associações nacionais daqueles sectores, a Ordem dos Arquitectos (que, todavia, passou a estar presente na secção das Artes) e a Associação dos Arqueólogos Portugueses.”


Bom, feito agora o mesmo exercício, ele dá origem aos dois quadros que ilustram este texto.


O primeiro, refere-se aos museus e como se verifica o actual Conselho Consultivo da Museus e Monumentos, EPE, tendo aumentado consideravelmente o número de membros (de 19 para 25), mantém no essencial a estrutura governamentalizada que vinha do antecedente. Os membros independentes são uma clara minoria.


Já quanto ao segundo, o Conselho Consultivo da Património Cultural, IP, assinala-se uma importante alteração: contrariamente ao que sucedia antes, os membros independentes são agora mais de metade (53%) da totalidade. Entidades como a Associação dos Arqueólogos Portugueses, que desde a monarquia liberal até ao final do século passado, sempre tiveram assento nos órgãos equivalentes, voltam a estar representadas e juntam-se-lhe outras dos sectores abrangidos, sem que simultaneamente haja aumento dos membros dependentes de alguma forma do Estado e nomeadamente do governo central.


Fica a dúvida da razão que leva a existirem estruturas de representatividade tão díspares entre estes dois Conselhos Consultivos. Será porque serão chamados a cumprirem funções muito diferentes? Ou será por mera ausência de reflexão estratégica e cívica quanto as estas matérias? Confesso que me inclino muito mais para esta segunda alternativa. Reforço, aliás, este meu convencimento com o facto de se manterem no CNC e as secções de “museus, da conservação e restauro e do património imaterial” e “património arquitetónico e arqueológico”, sem qualquer referência à transferência de competências ou mera articulação com os conselhos consultivos ora criados – uma situação profundamente anómala, especialmente no caso da segunda, que, com o tempo, se tinha vindo a converter numa espécie de conselho consultivo da DGPC, situação que pelos vistos muito agradava aos seus membros, mesmo os nomeados e independentes, que provavelmente tinham prazer ou se sentiam importantes por andarem carregados de processos para darem parecer, em vez de verdadeiramente aconselharem o membro do governo da Cultura em matéria de políticas patrimoniais nacionais.


Enfim, veremos como tudo se vai passar na prática. Uma coisa é certa: cá estaremos, como sempre estivemos, para aplaudir ou denunciar, conforme os casos.



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[i] Textos de opinião publicados entre Junho e Agosto de 2023 no jornal Público, referentes à reforma da administração pública do Património Cultural e Museus, acrescidos de alguns outros em sítios de associações e de artigos informativos principais: JUNHO 2023 22: https://www.publico.pt/.../empresa-publica-museus... 23: https://www.publico.pt/.../museus-autonomia-ageis-vao... https://www.publico.pt/.../passagem-museus-municipios... 29: https://www.publico.pt/.../patrimonio-cultural-museus-vai... JULHO 2023 8: https://www.icomos.pt/.../2023/icomospt_parecer_MMP-PC.pdf 10: http://ml.ci.uc.pt/mhonarchive/archport/pdf5nxzvZSyLJ.pdf) 17: http://ml.ci.uc.pt/mhonarchive/archport/pdfMtfKFX8YMu.pdf 24: https://www.publico.pt/.../braga-desclassificacao-museus... 25: https://www.publico.pt/.../museus-monumentos-portugal-epe... 27: https://www.publico.pt/.../milhar-municipalizacao-museu-d... 29: https://www.publico.pt/.../retrato-dois-museus-interior... 31: https://www.publico.pt/.../museus-monumentos-segunda-2058572 AGOSTO 2023 1: https://www.publico.pt/.../museus-discutir-gestao-tutelas... 5: https://www.publico.pt/.../isabel-cordeiro-autonomia... 6: https://icom-portugal.org/.../apreciacao-do-icom.../ 7: https://www.publico.pt/.../ha-patrimonio-alem-museus... 9: https://www.rtp.pt/.../presidente-da-ccdr-n-contra... 10: https://www.publico.pt/.../nova-tutela-patrimonio... 12: https://www.publico.pt/.../reforco-capital-autarquia... 18: https://www.publico.pt/.../marcelo-promulga-nova-gestao... 19: https://www.publico.pt/.../gestao-patrimonio-cultural... https://www.publico.pt/.../futuro-cultura-pais-real-2060651 20: https://www.publico.pt/.../opi.../opiniao/novas-ccdr-2060653 22: https://www.publico.pt/.../nova-tutela-patrimonio... 28: https://www.publico.pt/.../patrimonio-cultura-integral... 30: https://www.publico.pt/.../d-diogo-sousa-possivel... https://www.publico.pt/.../novos-concursos-directores...


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