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A oportunidade de viver oportunidades!


“Fique em casa”: este é o conselho que todos recebemos nos dias que correm. Por vezes esse conselho é ainda mais intenso e condiciona a viagem entre concelhos vizinhos.


“Vá para fora cá dentro”: este era o conselho que todos recebíamos há alguns anos para viajar por Portugal. Por vezes, esse conselho era ainda mais intenso e dizia-se “visite o Património”.


São duas mensagens que expressam duas decisões políticas, ambas reconhecidas com qualidade, oportunidade, que, não tenho dúvidas, se podem assumir como memória de distintos momentos.

A diferença entre elas até faz-nos pensar que às vezes parece que andamos às escondidas com o destino.


Ora, capazes de construir e mostrar património que é símbolo de qualidade, suporte de memória num território finito, ora, incapazes de defender a conservação da paisagem cultural existente. Ora, incapazes de o ver e visitar. Ora, capazes de o fruir como Andrea Bocelli propiciou recentemente na catedral de Milão.


Assim, quer fiquemos em casa ou estejamos fora dela, julgo que nos compete empreender, coletiva e inteligentemente, novos caminhos, ajudar a criar as condições para uma sociedade de harmonia, respeitando a natureza, o planeta, incrementando uma humanidade assumida.


A gestão da água, a gestão das energias, das reservas naturais, a gestão das comunicações, do urbanismo, da paisagem cultural e, até, a gestão das relações informáticas, exigem a aplicação de normas reconhecidas, legitimadas e respeitadas pelo homem global, muito para além da nação, da região ou do município.


A gestão destas “coisas”, património, exige uma dimensão superior da instância política.

O saudoso Professor Carlos Alberto Ferreira de Almeida dizia que “Património é qualidade e memória. Sem qualidade intrínseca ou circunstancial, não haverá fundamento para que um testemunho (memória) tenha de ser conservado”.


Nas circunstâncias que se atravessam, os testemunhos e expressões de qualidade são fundamentais para que a memória do homem seja reconhecida. Ainda há pouco tempo as Nações Unidas, pela voz do secretário geral António Guterres, valorizavam o facto de “em todo o mundo os jovens marcharem, organizarem-se e defenderem várias causas em que mostram enorme ativismo em defesa dos direitos humanos”.


Também nós, os cidadãos menos jovens (vulgo estratigrafia etária COVID19), enquanto formadores de gerações, sentimos que o momento exige que expressemos a nossa convicção, inabalável, de respeito pela vida humana, afirmada por uma vida cultural e cívica em liberdade.


Vida cultural e cívica que nós, todos os que de diferentes formas estão envolvidos no ensino, na investigação e no trabalho em Património, assumimos todos os dias como prioridade intrínseca e absoluta.


Ao longo das nossas vidas, desenvolvidas de forma mais ou menos pública, reconhecemos que tem que haver sempre o cuidado de conjugar ação e reflexão, empenhamento profissional, pessoal, por vezes também envolvimento político e trabalho ideológico. Todos nós, de distintas formas, tivemos e temos a oportunidade de analisar, com mais ou menos acuidade, as evoluções das sociedades, seja a local, a regional ou a mundial.


Ao fazermos estas análises, de modo mais ou menos assumido, estamos a reconhecer o nosso modo de vida e as formas de pensamento da humanidade, os seus testemunhos (memórias).

Apesar das propostas e repetidos apelos, as Nações Unidas, neste século XXI, parecem incapazes de controlar a deriva violenta das tensões mais visíveis.


Mas isto não nos admira. O homem tem sido teimoso ao longo dos milénios. Em texto romanceado por Marguerite Yourcenar, o imperador Adriano, no século II d.C., dizia que era necessário “Fundar bibliotecas porque isso era o mesmo que construir celeiros públicos, acumular reservas contra um inverno de espírito, cuja aproximação certos sintomas me fazem prever, mau grado meu”.


No entanto, no século XXI, com ou sem vírus, é essencial refletir sobre as políticas e sobre a dimensão ética da decisão pública, local, nacional, continental e mundial.


Repare-se que em matéria de decisão pública o obstáculo imediato que salta aos olhos é, quase sempre, o da legalidade e o da legitimidade. Menos o da utilidade, menos o da sua humanidade.

Por vezes, e não poucas, para ultrapassar estes obstáculos, procura-se suporte no discurso científico, justificando um complemento de legitimidade.


Ora, estes dois mundos, o da ciência e o da decisão pública, são muito heterogéneos. Na ciência o experimentalismo é fundamental. Em contrapartida, na decisão política não deve haver experimentalismos. É por isso que é premente valorizar (valorizar muito) quem assume, na plenitude, uma dimensão superior da política.


Sou de uma geração que cresceu na adolescência a frequentar escolas, então chamados liceus, na década de 60 do século XX, em que muito se falava da aplicação da declaração universal dos direitos do homem, da ratificação pelos diferentes países deste documento que procurava propor normas relativas aos direitos civis e políticos do homem.


Era uma declaração promovida pela ONU a partir de 1948, nos anos após a segunda guerra, para uns, chamada guerra mundial, para outros uma guerra civil na europa. Recordemos que morreram na segunda guerra mais de 50 milhões de pessoas. Desde então, salvo alguns focos de tensão, geograficamente limitados, a Europa tem sentido e assumido que está em paz.


É este conceito de competência cívica que se exige a quem assume uma dimensão superior da instância política.


Como escreveu Cícero, há cerca de dois mil anos, “o bom líder é aquele que tem dedicação ao trabalho, capacidade de decisão nas situações perigosas, energia na ação, rapidez na execução, bom senso nas previsões, caráter excecional, autoridade e boa sorte”.


À sociedade competente, pede-se que assuma o primado da política, exercida a nível mundial, nacional, regional ou local.


Só uma sociedade competente reconhece a qualidade das opções e a dimensão da decisão pública, para que sejam reconhecidas com qualidade e se assumam como memória. Até porque podemos reinterpretar Carlos Alberto Ferreira de Almeida e defender que sem qualidade intrínseca ou circunstancial, não haverá fundamento para que uma decisão (assumida como testemunho) tenha que ser conservada. O vírus não ataca as decisões, boas ou más. Mas se forem boas podem constituir-se em memória. Assim, os slogans “Vá para fora cá dentro” numa circunstância e “Fique em casa” noutra bem diferente, podem ser memórias...

 

O autor utiliza o Acordo Ortográfico.


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