O que une as pessoas? O que as mobiliza? Não na lógica do entretenimento, mas sim na da luta, da perseverança, na projecção num futuro? O que as faz sair do seu conforto para lutarem por algo que as transcende? Darem de si para algo que não é seu, no sentido proprietário do termo, mas sem o qual não se definiriam, afinal?
A destruição testemunhada por todos de um símbolo universal da Cultura deixou bem claro o poder do património, ainda tão mal entendido por tantos: visitada por cerca de 13 milhões de pessoas ao ano, baseando a sua atractividade numa história com praticamente nove séculos e personificando o rasgo do movimento gótico na Europa Medieval, a Catedral de Notre-Dame viu, aparentemente num acidente fortuito, parte significativa desta sua certificada atractividade desaparecer e, quase em simultâneo, erguer-se uma nova, ancorada por completo nos homens de hoje e na sua possibilidade “patrimonial” de futuro.
Em escassas horas, um monumento do século XII ganhou uma roupagem adicional, uma segunda camada de ícone neste tumultuoso século XXI – século, afinal, tão incerto e angustiante nas relações entre povos e nações: movidos e mobilizados não por uma desgraça causada por homens sobre outros homens, não por um cataclismo natural sobre gentes indefesas, mas sim por um aparente acidente, fortuito, casual, sem propósito algum que não o da mera fatalidade que escapa ao nosso controle.
A algo tão eventualmente opaco em significado para muitos, símbolo de uma só crença religiosa, ostentadora de uma complexa e imponente estrutura de pedra e madeira, velha de quase 900 anos, edificada num país, numa cidade, numa capital concreta, respondem, afinal, inúmeros cidadãos, franceses e outros, abastados e menos abastados, na forma individual, familiar ou como empresas. Geram-se consensos e solidariedades entre governantes de França, da Europa e empatia de outros líderes mundiais. Desenha-se um horizonte temporal de reconstrução – parcial, total – espantosamente célere para um edifício tão largo em história, tão extenso em significados e tão brutalmente amputado.
Como se uniram estas pessoas? O que as mobilizou? Pelo que lutam, pelo que perseveram, como se projectam no futuro, ao lutarem por algo que claramente as transcende, tanto a montante como a jusante? Como se sentem tão proprietários deste bem comum?
Há um activo estratégico invisível ainda à maioria de nós – sobretudo aqui em Portugal –, que povoa os nossos territórios, quer sejam eles do litoral, do interior, centrais ou periféricos, e no qual o nosso país é particularmente rico: um activo que chega às nossas mãos já amortizado e que se apresenta pronto a ser rentabilizado nas suas várias dimensões culturais. Um activo prenhe de significado vindo do passado, mas totalmente aberto ao presente e maleável à vanguarda do futuro a desenhar. Um activo que é verdadeiramente um activo quando reconhecido por cada um de nós e somente quando reconhecido por cada um de nós como tal e não por abstracto decreto ou classificação administrativa. Um activo que, pela sua dimensão patrimonial, tem uma força de agregação extraordinária em torno de heranças comuns, democrático no seu âmago, telas do mais puro génio humano, testemunho da milagrosa inutilidade da arte: gerador de harmonia, de bem-estar, de confiança e de um rejuvenescedor sentimento de pertença. Um activo, um recurso que guarda em si um enorme potencial de futuro, camaleão se for necessário, reflexo do que os outros – os de agora – vêem nele: o património existe na medida em que é reconhecido como tal.
Quando é reconhecido, quando passa efectivamente a existir, antes de mais, para aqueles que se cruzam com ele numa base diária, mas sendo estruturalmente cegos à sua presença, o património tem este enorme e talvez único poder de mobilização, de agregação, de testemunho do melhor que podemos produzir em conjunto: unidos, mobilizados, perseverantes. Cientes da nossa identidade. E, sobretudo, imaginando e criando futuro.
Texto originalmente publicado no Público-Ípsilon