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Torre Velha da Caparica, ou a (Des)valorização do Património


Torre de S.Sebastião vista do rio Tejo (norte)

A 26 de abril de 2012, através de resolução do conselho de ministros, a Torre Velha da Caparica, também designada Torre de S. Sebastião, foi classificada como Monumento Nacional. Até ao momento, é o único elemento de património no concelho de Almada a merecer aquela classificação. O Estado reconheceu dessa forma que o valor histórico e patrimonial do conjunto edificado «representa um valor cultural de significado para a Nação» (nº 4, Art. 15, Lei nº 107/2001).

Vejamos então qual o fundamento do conjunto edificado ser reconhecido como «um valor cultural de significado para a Nação», conforme definido pela Lei de Bases do Património Cultural (nº 4, Art. 15, Lei nº 107/2001). A elaboração do pedido de classificação foi da iniciativa do investigador almadense Raúl Pereira de Sousa (1926 - 1999), autor do primeiro estudo monográfico “Pequena História da Torre Velha,” publicado em 1997. O pedido foi apresentado pela Câmara Municipal de Almada em setembro de 1982, (trinta anos antes da resolução).

Contudo, foi necessário esperar pelo ano de 2007 para ser dado à estampa aquele que será o mais aprofundado e rigoroso estudo sobre a Torre de S. Sebastião de Caparica, da autoria de Pedro de Aboim Inglez Cid. Apesar de ter feito algumas visitas ao monumento, só tomei consciência da importância impar da Torre Velha no contexto não apenas da história nacional como mundial, após a leitura da referida obra. Por outro lado, o monumento integra-se na escala local, inserido numa paisagem rica de referências históricas e aspetos naturais que fazem ressaltar o seu valor cultural.

Torre de S.Sebastião vista do rio Tejo (norte)

Torre de S.Sebastião vista de terra (oeste)

Fotografias 1 e 2

Historicamente, segundo Pedro Aboim Cid, a construção da Torre de S. Sebastião na Caparica datará de 1481-1482, coincidindo com a subida ao trono de D. João II, sendo contemporânea da construção da fortaleza de S. Jorge da Mina (no atual Gana). Depreende-se que o jovem monarca, aquando da sua subida ao trono, havia já concebido e planeado o rumo da sua governação assente numa visão da política e da estratégia de defesa militar, que deveria conduzir Portugal na expansão ultramarina. Para tal juntava ao conhecimento da tratadística a capacidade de experimentar e testar novas soluções no campos da arquitetura e da artilharia, entre outros. Para tal, era coadjuvado por um conjunto de pessoas escolhidas, entre as melhores nos seus ofícios, das quais se destaca a figura de Garcia de Resende, seu cronista, ou de Diogo de Azambuja, capitão-mor da armada encarregada da construção da fortaleza de São Jorge da Mina.

A necessidade da defesa da cidade de Lisboa contra ataques de navios chegados ao Tejo acentua-se a partir do momento em que estes dispõem de artilharia. A utilização cada vez mais generalizada da pirobalística vai obrigar a profundas modificações nas estruturas defensivas, no sentido de diminuir a altura dos panos de muralhas e aumentando a sua espessura, de forma a resistirem melhor ao tiro da artilharia. Por outro lado, a defesa da cidade assentava na necessidade de bater o inimigo evitando a sua aproximação. Nessa medida, o plano idealizado pelo “Príncipe Perfeito” assentava no fecho da barra do Tejo através de um conjunto de estruturas defensivas armadas com artilharia, nomeadamente: a Torre de Santo António, na Baía de Cascais, que servia como ponto de atalaia e defesa próxima da praia contra eventual desembarque; uma nau fundeada no Tejo; a Torre de São Sebastião na Caparica; e uma segunda Torre, em Belém, que terá sido projetada, mas nunca edificada em virtude da morte prematura do rei D. João II. A Torre de Belém que conhecemos foi edificada já durante o reinado de D. Manuel I.

Todas as estruturas idealizadas e construídas para a defesa da Barra assentavam na possibilidade de realização de tiro tenso “ao lume de água”. Essa técnica terá sido ensaiada por D. João II ainda príncipe e consistia em disparar o projétil de artilharia rasante à superfície, para que, quando tocasse na água, fosse projetado, ganhando força e aumentando a distância percorrida, atingindo o navio inimigo ao nível da linha de flutuação, provocando o seu afundamento.

Interior da Torre

Acesso da escada no terraço

Fotografias 3 e 4

Chegamos assim à Torre da Caparica, cujo plano de construção terá obedecido a um programa funcional, rigoroso e inovador para a defesa costeira, face às estratégias de guerra naval moderna baseada no uso da artilharia. O local escolhido para a implantação do complexo defensivo foi aquele onde a distância entre as margens é menor. Tirando partido da orografia da margem sul do Tejo, parte da estrutura encontra-se adossada à arriba, tendo na base o baluarte, onde estavam colocadas as peças de maior calibre, destinadas a disparar “ao lume de água”. A partir do baluarte desenvolve-se, em três níveis sobrepostos, uma estrutura composta por corredores de tipo casamata. Através desta estrutura passavam escadas de acesso à plataforma superior onde se encontra a torre propriamente dita.

Diferenciando-se do conjunto, que se mimetiza com a arriba, o volume cúbico da torre terá sido concebido para ser visto desde a entrada da barra, bem como para servir de ponto de observação virado para a foz do Tejo. A estrutura, de planta quadrangular, com paredes de dois metros e vinte de espessura e teto em abóbada de volta perfeita, apresenta um piso térreo que terá servido de armazém / paiol. O piso superior, do qual são visíveis na parede os encaixes do vigamento, serviria de posto de comando e espaço habitacional, como se depreende da existência de uma lareira e três janelas implantadas ao nível do sobrado. Desse piso acede-se, por uma escada interior, ao terraço que constitui a cobertura da torre, local privilegiado de observação e sinalização.

Ao longo da sua existência de cinco séculos, todo o complexo sofreu intervenções e acrescentos, nomeadamente durante o século XVI, no período filipino e no século XIX, com a instalação de um espaço destinado às quarentenas de viajantes. As estruturas industriais instaladas no século XX, ocupando a base da arriba, cobriram o antigo baluarte quatrocentista, do qual não se identificam quaisquer vestígios. Contudo, através da análise atenta do investigador Pedro Aboim Cid é possível constatar que grande parte do complexo defensivo original ainda subsiste, embora escondido sob a vegetação e camuflado na própria arriba.

Capela de São Tomás de Aquino

Fotografia 5

No contexto local, a construção da Torre de S. Sebastião coincide com um período de grande desenvolvimento da região, nomeadamente com a fundação da paróquia da Caparica em 1472, por Bula Apostólica do Papa Sisto IV, ocorrendo a sagração da igreja matriz em 1482 durante a construção da Torre de S. Sebastião. No território da então recém-criada paróquia encontram-se os solos mais férteis do Concelho de Almada, cuja exploração era a principal fonte local de rendimentos. A proximidade da capital também trouxe à Caparica famílias da nobreza que aqui possuíam propriedades e fundaram os seus morgadios. Por exemplo, D. Gonçalo Coutinho, conselheiro de D. Manuel I, cujo descendente D. Tomás de Noronha instituiu um morgado na Quinta da Torre consagrando a capela a S. Tomás de Aquino. Esta capela está classificada como Imóvel de Interesse Público, sendo um dos poucos exemplares de arquitetura manuelina existentes no concelho de Almada. Encontra-se a pouco mais de mil metros da Torre Velha, completamente coberta por vegetação. A alguns metros para sul está o que resta do poço e tanque manuelinos da Quinta da Torre, cujos edifícios se encontram em estado de ruína. A nascente da Torre Velha está situada a povoação de Porto Brandão, cuja importância como porto fluvial era já reconhecida no período romano, como local de atravessamento do Tejo. A meia encosta da estrada que sai do Porto Brandão encontra-se o lugar da Fonte Santa, povoação antiga e conhecida pela abundância e qualidade das suas águas, usadas para as aguadas dos navios.

Perante o que aqui resumidamente se expôs, considera-se justificado o reconhecimento da importância e valor da Torre Velha como Monumento Nacional, sem esquecer o seu enquadramento na paisagem cultural da margem sul do Tejo. Contudo, o monumento é quase desconhecido e até ignorado, como se constata pela ausência quase absoluta de estudos académicos, salvo a referida obra da autoria de Pedro Aboim Cid.

Tratando-se de um exemplo de arquitetura militar, que marca a passagem da época medieval para a moderna, é também um elemento chave para interpretar a expansão marítima portuguesa. Propriedade do Estado Português, a Torre Velha encontra-se atualmente inacessível e ao abandono. Todo o terreno envolvente ao monumento foi vendido a privados em 2010, sem que tenha sido acautelado, por parte da Direção Geral do Tesouro, o acesso ao monumento, o que inviabilizou a possibilidade de se desenvolverem estudos mais aprofundados sobre o conjunto edificado, que viessem a contribuir para o melhor conhecimento do monumento, bem como a sua reabilitação.

Poço manuelino da Quinta da Torre

Fotografia 6

Consideramos que a valorização da Torre de S. Sebastião deverá integrar os testemunhos, monumentos e conjuntos que lhe estão cronológica e geograficamente associados, assim como a referenciar as figuras que no concelho de Almada, e na paróquia da Caparica em particular, foram protagonistas da história de Portugal nos séculos XV e XVI.

Num momento em que se debate acesamente como designar um museu dedicado à expansão marítima portuguesa, talvez faça sentido olhar objetivamente para a herança histórica da Torre Velha, a qual, por estar na outra margem do Tejo, não ostentando a “beleza” da sua congénere em Belém, não tem a mesma capacidade de captar divisas e, talvez por isso, seja tão DESvalorizada.

 

Bibliografia:

CID, Pedro de Aboim Inglez, A Torre de S. Sebastião de Caparica, Edições Colibri, Lisboa, 2007.

CID, Pedro de Aboim Inglez, «As arquitecturas da barra do Tejo: as fortificações», in Nossa Senhora dos Mártires: a última Viagem, Editorial Verbo, Lisboa 1998, pp. 33-49.

SILVA, Francisco, «Capela de S. Tomás De Aquino, um edifício gótico em Almada», in Al-Madan, nº 5 IIª série, Centro de Arqueologia de Almada, 1996, pp. 203-205.

SOUSA, Raúl Pereira de, Pequena História da Torre Velha, Câmara Municipal de Almada, Almada, 1997.

Fotografias:

1 – Torre de S.Sebastião vista do rio Tejo (norte). ©Francisco Silva / CD CAA

2 – Torre de S.Sebastião vista de terra (oeste). ©Francisco Silva / CD CAA

3 – Interior da Torre. ©Francisco Silva / CD CAA

4 – Acesso da escada no terraço (cobertura da Torre). ©Francisco Silva / CD CAA

5 – Capela de São Tomás de Aquino (no ano 2000; atualmente encontra-se completamente escondida pela vegetação). ©Francisco Silva / CD CAA

6 – Poço manuelino da Quinta da Torre (no ano de 2003; atualmente os capitéis das colunas já desapareceram). ©Francisco Silva / CD CAA

Francisco Silva - Centro de Arqueologia de Almada

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