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A pintura a fresco «Degolação de S. João Baptista» (II)


Neste texto, que continua um anterior, em que se analisa a pintura a fresco «Degolação de S. João Batista», iremos observar o que se encontra sobre a mesa, e perceber como a conjugação da documentação de arquivo, da literatura e da pintura nos incentivam a cruzar dados e a melhor conhecer o nosso património material e imaterial.

Na mesa: talhadores, prateira e saleiro

Gostaríamos de chamar a atenção para a mesa em que se sentam Herodes e Herodíade. Sobre esta, como é costume em toda a pintura daquela época, uma toalha branca, pregueada e impecavelmente limpa, sobre a qual pousam dois talhadores, ou seja, duas tábuas de madeira usadas na época para sobre elas colocar os alimentos de cada conviva.

Os outros dois utensílios pousados sobre a mesa são uma prateira (prato grande) com um frango e um saleiro (o qual faz lembrar uma píxide).

É importante referir que, neste período, quando se punha a mesa se colocava invariavelmente sobre esta os trinchos ou os pratéis (pratos pequenos), os copos, o pão, o saleiro e muitas vezes a salsinha (recipiente) com os condimentos, normalmente a mostarda.

Clenardo, numa das suas cartas conta que numa casa onde pernoitaram junto ao Tejo, mandou seu criado pôr a mesa, colocando-se sobre esta – «o saleiro e um ou outro pão.» (CEREJEIRA, 1926: 390). No Inventário de bens da Infanta D. Beatriz, em 1507, há referência a «quarenta e um saleiros de pau» (FREIRE, 1914: 92), sendo também de mencionar que os bainheiros vimaranenses faziam, em 1552, «caixas para saleiro e copo de pé» (ALMEIDA, 1930: 54), sendo que estas eram utilizadas para o transporte dos referidos utensílios, quando o seu possuidor se deslocava em viagem, pois, à época quem viajava tinha de levar consigo os seus próprios talheres.

Na mesa: duas regueifas

Mas, a razão principal deste texto é chamar a atenção para os dois pães pousados sobre a mesa. Trata-se de duas regueifas, um tipo específico de pão que ainda hoje tem a mesma forma (a de uma rosca), e se costuma comer no Norte do País, principalmente aos Domingos e dias feriados.

Bluteau define regueifa como uma «rosca de pão em forma de argola» (BLUTEAU, 1789, II: 312).

O termo regueifa já nos aparece em documentação medieval. É, por exemplo, referida nas inquirições de D. Afonso III (1258) por duas vezes: a primeira, quando se determina que uma propriedade (casal) que o rei possuía em «Cabrela» teria de pagar anualmente, entre outros produtos, 12 regueifas; a segunda, respeitante à paróquia de S. Martinho de Sande, na qual se determina que os seus habitantes deveriam pagar, também, entre outros produtos, 3 regueifas (PMH_vol2. Inquirições de D. Afonso III. Regueifa. P. 956 e 1140, 1428).

Num dos livros de linhagens, escritos na época medieval, fala-se do rei Ramiro II de Leão (séc. X), descrevendo-se a vinda deste a terras de Gaia para resgatar sua mulher, a qual tinha sido sequestrada pelo rei mouro «Abencadão». Não nos interessa aqui a narrativa da história, apenas que o rei Ramiro promete alimentar o rei «Abencadão» com um capão assado, uma regueifa e uma copa cheia de vinho (PMH. Scriptores. P. 180-181).

O que se torna deveras interessante é que a regueifa representada nesta pintura, e que ainda hoje se come na região Norte, já naquela época tinha a mesma forma e a mesma designação da regueifa dos nos nossos dias. Se lermos «O Clérigo da Beira», auto de Gil Vicente escrito em 1526, aí encontramos referência à regueifa (FERNANDES, 2002):

«Já minha mãy tem tascada

a regueyfa do bautismo:

anday vós cá, pay, ao bismo,

que ella nam lhe escapa nada».

Como se pode verificar pelo presente exemplo as peças de um museu guardam muitas histórias e ajudam-nos a conhecer melhor quer o Passado quer o Presente. Se não lhe contasse esta história seria capaz de imaginar que a regueifa que hoje chega às nossas mesas já se comia na época quinhentista?

Os museus são lugares de permanentes descobertas, de conhecimento do outro e de nós próprios e são guardiães de muitas e interessantes histórias.

Se quiser conhecer duas regueifas quinhentistas tem apenas de se deslocar a Guimarães, ao Museu de Alberto Sampaio, e conhecer esta pintura a fresco que representa «A Degolação de S. João Baptista».

Bibliografia citada:

ALMEIDA, 1930. Eduardo d’Almeida – Regimento de salários e preços de 1552 para Guimarães. Revista de Guimarães. 40:1-2 (1930) 41-63; 40: 3-4 (1930) 149-170.

CEREJEIRA, 1926. M. Gonçalves Cerejeira – Clenardo: o humanismo em Portugal: com a tradução das suas cartas. Coimbra: Coimbra Editora, 1926.

COLECÇÃO, 1996. A colecção de pintura do Museu de Alberto Sampaio: séculos XVI-XVIII. Lisboa: Instituto Português de Museus. Museu de Alberto Sampaio, 1996.

FERNANDES, 2002. Isabel Maria Fernandes – Alimentos e alimentação no Portugal Quinhentista. Revista de Guimarães. 112 (2002). P. 125-215.

FREIRE, 1914. Braancamp Freire – Inventário da Infanta D. Beatriz: 1507. Arquivo Histórico Português. Lisboa. 9: 97-108 (1914). P. 64-110.


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