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Incêndio sem rescaldo


O que aconteceu no mês passado no Museu Nacional, antigo Paço de São Cristóvão no Rio de Janeiro, depois de este ter alcançado, enquanto museu, a idade simbólica de duzentos anos, chocou-me profundamente e chocou muitos mais. Choque forte mas não surpresa total. Merece ser relembrado e não esquecido. Por todos os motivos e mais alguns. Uma sensação de dor (física inclusive), de perda e também de revolta, que nem o fogo consegue consumir.

Estamos a falar daquilo que era uma tragédia anunciada e de ouvidos moucos (também irresponsáveis) ao dito popular “mais vale prevenir do que remediar”, o que no caso de património cultural destruído tem tanto de assertivo como de relativo. E que falta faz ouvir mais para que tanta coisa funcione melhor… Como remediar? Talvez não seja possível. Talvez. Por completo, certamente que não. Aprender alguma coisa com os erros não será mau de todo. Apostar na prevenção pode exclamar-se, quase que se tornou num lugar-comum, mas continua a fazer sentido, não é levado à prática, só existe em grande medida no papel, no discurso, na legislação. Não chega. O Brasil, país que atravessa actualmente circunstâncias políticas e sociais que não são particularmente favoráveis, possui, no entanto e apesar de insuficiências culturais, uma certa pujança museológica que devemos acompanhar deste lado do Atlântico.

Palácio Nacional da Ajuda (Ala Norte)

Palácio Nacional da Ajuda (Ala Norte)

Num momento em que por cá está em discussão o Orçamento Geral do Estado para 2019, a tragédia brasileira que é também portuguesa, pois parte da nossa história comum ficou naquelas cinzas, não pode ser dissociada da suborçamentação do sector cultural (também na Educação e na Ciência por exemplo) de responsabilidade do Estado mais não seja por imperativo constitucional e legal, deve preocupar-nos a todos, cidadãos atentos e participativos. No Brasil, em Portugal e em qualquer parte do mundo que seja (ou tenha pretensão a sê-lo) minimamente civilizado e desenvolvido.

Não é exigir o impossível, é apelar à responsabilidade, à coerência e à consequência. Tenho repetido que o problema não é exclusivamente orçamental, não se resume a mais ou menos verbas disponíveis para a área da Cultura, mas também o é. Longe de querer desvalorizar este tópico e descentrar a discussão, muito menos a Cultura. É necessário dar uma nova centralidade à Cultura. A questão é precisamente esta. Fazê-lo, por mérito próprio de um sector que se reveste de uma importância real e estratégica, entrar num lugar de maior destaque na hierarquia das prioridades políticas, quer dos responsáveis públicos e das suas mentalidades, quer dos instrumentos legais que podem fazer a diferença. Um deles, não o único, é sem dúvida o OE. Reforçar de forma digna e substancial (o desejado 1% não é irrealista) as verbas para a defesa e a valorização do património cultural, da criação cultural e da sua diversidade, dos apoios às artes e o alargamento do acesso à fruição cultural, sem uma análise distorcida que a capa pouco transparente da verba para a RTP pode potenciar, e com isto não quero estar a por em causa o serviço público de cultura prestado por esta estação.

Não adiantará ter 1% das verbas do OE destinadas para a área da Cultura se, ainda que por hipótese remota ele seja alcançado desde já (é um wishful thinking, admito), a imposição das Finanças se sobrepuser ao aprovado na lei do Orçamento do Estado, cativando montantes que por esta via lhe estavam destinados. Não pode haver ilusionismos nem hipocrisia. A ser, significará um prorrogar da presença apenas no papel, na legislação, e não ser levado à prática, com rigor e exigência. É como atribuir, por decreto, mais autonomia aos museus e à sua gestão e não lhes conferir meios concretos para que a delegação (ou transferência efetiva) de competências (e que competências?) se traduza em autonomia administrativa e financeira real, ou seja, verdadeiramente autónoma e não dependente. Porventura, alguns de vós participaram na discussão do tema “Museus: os desafios da autonomia”, promovida pelo ICOM Portugal, e que teve lugar no passado dia 15 de outubro, no Museu Nacional Machado de Castro, em Coimbra (escrevi o presente artigo antes dessa data).

Foto: Pedro Sadio

Palácio Nacional da Ajuda (Torreão Norte)

Apesar de diplomas diferentes, estão naturalmente relacionados e não podem chocar um contra o outro. A importância da legislação aplicável, debatida e votada nos órgãos competentes, num Estado de Direito e numa Democracia que se quer madura e participativa não deve ser posta em causa, mas a perpetuação da mesma no papel, sem consequências práticas e sem uma evolução positiva na vida das instituições culturais, na qualidade da cidadania, e da vida das pessoas em geral, pode ser fatal. É uma espécie de incêndio sem rescaldo, de um lume brando que desgasta e acabará por consumir o que de melhor este país tem: a sua identidade, a sua memória, os testemunhos materiais e imateriais (neste sentido até estes podem arder) do nosso percurso colectivo e das suas idiossincrasias.

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