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Memória, História e Património – Interesses em conflito


A invenção da história como exercício racionalizado de conhecimento do passado representou uma rutura fundamental na modernidade, contribuindo para romper com uma visão fixista da realidade, que justificava a paralisa e decadência do que restava do modelo medieval com a “imutabilidade das coisas”. Obviamente, os pré-modernos tinham noção de que no passado houvera transformações (cf. o De rerum natura de Lucrécio, por exemplo), e em diversas ocasiões se haviam dedicado à coleção de objetos do passado (incorporados em coleções privadas), à glorificação de grandes obras arquitetónicas e artísticas (como as maravilhas elencadas na antiguidade por Antípatro de Sídon), ou à organização de grandes arquivos de ideias (como a célebre Biblioteca de Alexandria, de Ptolomeu). A modernidade não inventou a noção de passado, nem a de coleção ou a de arquivo e biblioteca. Mas a modernidade inscreveu-os no espaço da laicidade, através de um esforço de racionalização metodológica sujeita ao contraditório e como elemento nuclear da sua grande invenção: uma noção de cidadania acessível a todos e não apenas herdada por laços de família; uma noção de espaço como ligar de transformação no tempo.

O Património é outra coisa: algo herdado, erigido em fóssil invariante, para contento de realidades que não conseguem, ou temem, imaginar a sua própria transformação. Daí o seu enorme sucesso, mediático e comercial, nos dias que correm. E não haverá, em si, nada de mal numa lógica de consumo de património, tal como o não há no uso consumo de sushi ou de calças de ganga: são produtos de um mercado internacional, que geram emprego e satisfação a muitas pessoas.

A cidadania, porém, é outra coisa. E seria prudente perceber que se o exercício racional da história tem a sua resiliência vinculada a uma certa noção de participação esclarecida na visa em sociedade (o enfraquecimento de um gerando o enfraquecimento do outro), a resiliência do património tem a sua resiliência vinculada à lei da oferta e da procura (tendendo a exaurir-se, como qualquer outro produto). Seria por isso menos mau que as tutelas da educação e cultura se ocupassem a sério da História e deixassem, sem equívocos e sem promiscuidade, o património entregue aos negócios.

Hoje, o património é, muitas vezes, a porta de acesso á pré-modernidade e á alienação, nomeadamente quando escamoteia os conflitos que à sua sombra crescem: entre sensação identitária do passado no presente (memória, património) e incorporação humanitária do passado no presente (história, património); entre construção dinâmica de paisagens culturais (foco no património material e na compreensão histórica dos valores) e preservação atualista de impressões identitárias (foco no património imaterial e na valorização da diferença comportamental como um bem a-histórico).

É contra essa deriva que me parece importante reagir, como o fez a Conferência Mundial das Humanidades, em agosto passado.

Anta 1 de Val da Laje, em Tomar: um lugar de interrogação e debate ou um ativo de negócios?

Capa das atas da Conferência Mundial das Humanidades, organizada pelo CIPSH e pela UNESCO, cujas conclusões foram ratificadas pela Conferência Geral da UNESCO em novembro de 2017. Texto disponível em www.cipsh.net

Veja o vídeo "Mação: conhecimento, património e resiliência"

* O texto foi escrito de acordo com o Novo Acordo Ortográfico.

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