A nova equipa ministerial que esta semana toma posse no Palácio da Ajuda, vai encontrar em cima da mesa o tema ainda quente da zona de Belém. Trata-se de decidir sobre o futuro daquela que é provavelmente a zona turística e patrimonial mais visitada do país e, pelo caminho, definir também qual o melhor modelo de gestão para esse fim.
A este propósito, o Dr. Luís Raposo publicou um recente artigo (Público, 23.03.2016) sobre a gestão dos monumentos e museus em Portugal, onde levanta a questão da disparidade do preço de entrada em alguns monumentos nacionais, concluindo pela sua extrema injustiça. Explicado em termos de ppp (paridade do poder de compra), ou seja harmonizando a diferença do custo de vida nos diferentes países em comparação, o argumento parece ter aceitação matemática: um português paga um bilhete mais caro face ao cidadão estrangeiro que visita o nosso país. Porém, esta é visão muito parcial, que aborda a questão dos custos, mas esquece a questão das receitas. Uma não existe sem a outra e a questão central é a seguinte: o Estado encontra-se hoje em complicadíssima situação financeira no que às políticas culturais diz respeito e as fontes de receita dos museus e monumentos são cada vez mais chamadas a suprimir aquilo que o Orçamento de Estado já não consegue suportar. A actual suborçamentação do Ministério da Cultura tem sido aliás sobejamente referida na imprensa dos últimos dias. A verdadeira discussão recai portanto sobre a necessidade de um novo modelo de gestão patrimonial, aspecto para o qual o Dr. Luís Raposo não trouxe respostas ou propostas concretas, apenas questões gerais e muitas vezes, mais ideológicas do que práticas. E é aqui que me parece pertinente deixar algumas considerações.
Antes de mais, uma declaração de interesses: 1) Conheço muito bem a Zona Monumental de Belém pois, entre 2003 e 2007, foi o tema central da minha tese de Doutoramento sobre políticas patrimoniais, nomeadamente através do estudo do impacto económico do Mosteiro dos Jerónimos e do seu plano de gestão; 2) Conheço muito bem a empresa Parques de Sintra - Monte da Lua, S.A. onde colaborei entre 2007 e 2013 tendo assistido desde o início ao extraordinário processo de reabilitação da empresa e de todo o património à sua guarda. Em ambas as situações, um elemento comum que (por motivos óbvios, abundantemente referidos na imprensa recente) não posso deixar de citar, o Professor António Lamas, meu orientador no primeiro caso e o presidente da empresa, no segundo. Sou portanto daqueles que lamenta a sua saída do plano para Belém, pois reconheço-lhe inegável capacidade estratégica e de liderança para executar aquela complexa tarefa com êxito. Era certamente uma pessoa bem preparada para o fazer, dada a sua longa carreira patrimonial e uma bem-sucedida experiência recente em Sintra. Mas sou também dos que aguardava com alguma reserva os termos práticos do ‘Plano Estratégico Cultural da Área de Belém’ onde muitas zonas cinzentas do documento publicamente apresentado deixavam dúvidas (autonomia das instituições, partilha de receitas, gestão de empreitadas, modelo de governança…).
No âmbito da tese académica referida, calculou-se então para o ano de 2003 um valor de cerca de 30 milhões de euros de receitas totais (directas e indirectas) geradas pelo conjunto da actividade económica de natureza patrimonial no que se designou então por ‘Zona de Influência Económica’ do Mosteiro dos Jerónimos, coincidente como a chamada Zona Monumental de Belém (e agora descrita como eixo Belém-Ajuda). Este valor pode hoje representar facilmente mais do dobro das receitas naquela zona, face ao actual desempenho da economia turística da cidade de Lisboa. Porém, mais importante do que o valor em si era o facto de tal actividade se desenvolver naquilo que se considera ser muito possivelmente o maior ecossistema patrimonial nacional e, simultaneamente, o mais pequeno, praticamente coincidente com a freguesia de Santa Maria de Belém. Dispensa-se aqui descrever a sua riqueza patrimonial e a sua oferta cultural ou comercial, bastará referir a título de exemplo que os únicos dois monumentos classificados na lista do Património Mundial existentes na cidade de Lisboa estão precisamente a pouca distância um do outro, em Belém. Daqui a ser um dos locais com maior frequência turística, logo com maior capacidade de gerar receitas, é uma evidência. A questão é que em tão pequeno território encontram-se várias instituições públicas e privadas de grande peso político e económico com importante presença cultural (e mesmo sede), percebendo-se assim a complexidade da tarefa que quem agora pretenda sentá-los todos à mesma mesa para se entenderem sobre uma estratégia comum…
Ora é aqui que vêm a propósito as questões levantadas por Luís Raposo, porque na verdade o que está em causa é um novo modelo de gestão cultural para uma realidade complexa (no caso a zona de Belém-Ajuda) circunscrita no território (o referido Distrito Cultural), mas que na verdade corporiza um novo paradigma patrimonial, o da falência da gestão pública do património dependente apenas do Orçamento do Estado e o da procura de novas soluções de financiamento, seja pela via de parcerias público-privadas, seja através de concessões por concurso público, seja ainda (e sobretudo) através da concessão de autonomia de gestão aos museus e monumentos sob a tutela directa da DGPC. Aqui entra o tal discurso ideológico que confunde a concessão a privados de alguns equipamentos (desejável quando temporalmente definida e limitada à gestão cultural e comercial, mediante a definição rigorosa do projecto cultural em causa, com indicadores objectivos de resultados que salvaguardem o interesse público) com a alienação dos bens públicos (inadmissível e sem sentido).
O modelo normalmente referido como caso de estudo na gestão patrimonial em Portugal é precisamente o da Parques de Sintra - Monte da Lua (PSML), exemplo da eficiente gestão privada de bens públicos, descrito pelos seus críticos como gestão “privatizada” do património nacional. É certo que o modelo virtuoso apresenta falhas, apesar dos resultados e do visível e fruível trabalho de conservação e valorização efectuado: cerca de 90% de visitantes estrangeiros não deixa de ser um indicador de que os visitantes nacionais estão secundarizados e, em parte, tal deve-se a uma política de preços menos acessível. Há aspectos que devem ser corrigidos no seu modelo de gestão. Uma empresa de capitais públicos deve gerar valor público, quer económico (receitas, impostos), quer social (fruição, emprego). Porém, convém também relembrar que em 2007 a PSML acumulava um passivo de 9,2 milhões de euros e que hoje apresenta receitas de 17 milhões de euros, contabilizando mais de dois milhões de visitantes nos monumentos e propriedades à sua guarda e assegurando cerca de 300 postos de trabalho. Convém também referir que a empresa não distribui lucros pelos seus acionistas (todos entidades públicas) mas que reinveste tudo na sua missão que, por sua vez, gera actividade económica, emprego e impostos públicos.
As críticas são conhecidas, a existência destas 'bolhas' patrimoniais altamente rentáveis em contextos à partida favoráveis à visitação turística, são prejudiciais ao modelo equitativo de distribuição por outras áreas ou equipamentos culturais deficitários de atração e rentabilidade mínima para a sua sobrevivência. Neste contexto, entidades como a DGPC seriam profundamente prejudicadas por qualquer alteração no seu actual modelo de autofinanciamento, tão dependente das receitas dos Jerónimos ou da Torre de Belém. Mas não se deite fora o bebé, com a água do banho. A solução não passa por eliminar modelos eficientes de gestão patrimonial, mas sim melhorar os bons exemplos existentes, no sentido de uma melhor gestão e equidade patrimonial.
Artigo publicado no âmbito do Debate aberto sobre Gestão Patrimonial em Portugal.