Na primeira grande entrevista dada pelo actual Director-geral do Património Cultural, Nuno Vassalo e Silva, ao Jornal Público no passado dia 10 de Março, abordam-se algumas das questões estratégicas que determinam o presente o o futuro da DGPC.
A patrimonio.pt considerou particularmente relevante a discussão em torno da relação Património e Turismo e, nesse sentido, lançámos o repto a 3 profissionais de ambos os sectores para opinarem sobre a natureza desta relação. Ana Barbosa (Presidente da APECATE), Luís Raposo (ex-director do Museu Nacional de Arqueologia e ex-Presidente do ICOM Portugal) e Rosário Correia Machado (Directora da Rota do Românico) aceitaram partilhar a sua breve reflexão sobre a seguinte problemática: deve a relação Património e Turismo ser considerada estratégica, desenhando um programa comum, sem prejuízo da existência de programas específicos de cada valência; ou, em alternativa, não deve antes passar de uma relação pontual, motivada por projectos específicos que contemplem estas duas valências? Posto de uma maneira mais simples, a relação entre Património e Turismo deve ser estrutural e estratégica ou deve antes ser pontual e reactiva?
Aqui deixamos as suas opiniões, agradecendo desde já a sua disponibilidade e positivo contributo para uma discussão livre, oportuna e com substância.
Turismo e Património
Ana Barbosa | Presidente da APECATE
Para quem trabalha no Turismo, há questões que, em termos de reflexão, já não se colocam. Os problemas que as originaram podem não estar resolvidos mas as respostas já foram dadas e estão aceites.
É o caso da relação Turismo-Património. Para quem vive todos os dias a actividade turística, é uma evidência que ela não é pensável sem a utilização do património e que quem tem património para gerir, seja público seja privado, não pode nem deve querer alhear-se do contributo que o turismo tem que dar para a sua divulgação e conservação, dois conceitos-chave nesta matéria. Divulgação, porque fechar, esconder ou tornar o património inacessível à visita e fruição, é negar a sua essência de representação, de obra criada para significar algo para alguém. É tirar-lhe a alma e o sentido. Conservação, porque a sustentabilidade também se aplica aqui: é função de todos nós, humanidade, e não apenas dos estados, das igrejas ou dos privados detentores de bens patrimoniais, cumprir a obrigação de passar para as gerações futuras o que recebemos das que nos precederam. E como isto é um custo que precisa de ser assumido como prioritário – de outra forma não será nunca objecto de investimento – o Turismo tem um papel fundamental: como actividade que exige o recurso e como fonte de receita para a sua conservação.
As regras a cumprir para que a relação Turismo-Património acrescente valor a ambos os pólos estão definidas há muito tempo. Basta analisar todas as implicações dos princípios, muito inspiradores, propostos no Código Mundial de Ética do Turismo da Organização Mundial do Turismo, para nos apercebermos de que são um verdadeiro programa de acção. No que respeita ao Turismo enquanto utilizador do património cultural, afirma-se neste Código que os recursos turísticos pertencem ao património comum da humanidade e que as comunidades onde eles se situam têm face a eles direitos e obrigações especiais; que as políticas e actividades turísticas devem ser desenvolvidas no respeito pelo património artístico, arqueológico e cultural, competindo-lhe a sua preservação e transmissão às gerações futuras; que deve ser dado um cuidado especial à preservação e valorização dos monumentos, santuários e museus, bem como de locais históricos e arqueológicos quando estejam abertos à frequência turística; que deve ser encorajado o acesso do público aos bens e monumentos culturais privados, no respeito pelos direitos dos seus proprietários, bem como aos edifícios religiosos, sem prejudicar as necessidades do culto; que os recursos obtidos pela frequência dos locais e monumentos culturais estão vocacionados, pelo menos em parte, para ser utilizados na manutenção, salvaguarda, valorização e enriquecimento desse património; que a actividade turística deve ser concebida de forma a permitir a sobrevivência e desenvolvimento de produções culturais e artesanais tradicionais e não para provocar a sua padronização e empobrecimento.
Se associarmos a interiorização destes princípios e as motivações que hoje vemos nos turistas que nos procuram, nacionais e estrangeiros, temos que reconhecer que a actividade turística tem evoluído muito e que é importante olhar com muita atenção para os sinais dos tempos, de que pode ser exemplo a relação, nova e inovadora, entre recurso, produto e experiência no âmbito do chamado Turismo Cultural. Se o fizermos, penso que não restarão dúvidas de que a relação entre o Turismo e o Património não é uma relação pontual, de circunstância ou do tipo acordo de cavalheiros. É uma relação essencial, simbiótica, que deve ser considerada, cada vez mais, como uma relação estratégica assumida e desejada por ambas as partes.
Património e Turismo: uma questão de beijos
Luís Raposo | Ex-director do Museu Nacional de Arqueologia
Perguntam-me como deve ser a relação entre Património e Turismo. Estrutural e estratégica, pois claro, e nem vejo como possa haver quem responda diferentemente. Mas dito isto, diz-se pouco. Sobretudo desvia-se o assunto do que realmente está em causa.
Estrutural e estratégica deve ser a relação do património cultural e dos museus não apenas com a Economia/Turismo, mas também com a Educação/Investigação e com o Ambiente/Território. Todos, em pé de igualdade. Só que… bem sabemos ser seguramente mais fácil chegar ao “pote de mel” que as receitas do Turismo geram e lá meter a mão. Em qualquer dos outros domínios citados, será mais difícil obter proveitos rapidamente. Na Cultura, então, nem se fala: para alguns a vinculação do património e museus à Cultura é assim como uma cruz que se carrega, quando sem os pruridos de um humanismo serôdio seria certamente mais fácil fazer ambos dar dinheiro, muito dinheiro.
Acontece que, para além da (des)qualificação das motivações que (i)legitimamente podem animar os diferentes agentes envolvidos, existe o principal, ou seja, a matéria-prima que faz do património ser património e dos museus serem museus. Ora, esta é barro, o nosso barro comum, de onde viemos e para onde regressaremos um dia. E sendo assim, causa-nos no mínimo incómodo (revolta, no máximo) poder admitir que o nosso barro exista principalmente como activo expectante para apropriação turística. De resto, grande parte dele, os ossos talvez, nunca atrairá turistas. Mas nem por isso o menosprezamos. Quanto ao outro, a carne, sim, estamos prontos a partilhá-lo, com todos, numa espécie de ceia santa de hidromel. Desde que não implique vender a alma. Deixemos por isso Mefistófeles de fora. Ou seja e em conclusão: sim, o Turismo pode fazer papel de príncipe, desde que não nos resignemos a ser a Bela-Adormecida. Sejamos ofensivos do nosso lado, defendamos sem complexos os nossos valores e estabeleçamos depois relações estruturais e estratégicas, mutuamente vantajosas, baseadas em contratos-programa plurianuais, ditados pelo interesse público e capazes de originar também economia privada. Sobretudo, não nos deixemos encantar pelo que também pode ser o beijo da aranha.
Obs. – No que respeita aos museus, importa referir o carácter pioneiro, e sempre actual, da “Declaração para um Turismo Cultural Mundial Sustentável”, produzida conjuntamente pelo ICOM e pela Federação Mundial dos Amigos dos Museus (disponível em: http://icom.museum/declaration_tourism_eng.html). Sugere-se ainda a leitura do Editorial de Maria Vlachou e Marta Lourenço, no Boletim do ICOM Portugal, Série II, nº4 (Mar-Maio 2009), dedicado ao tema “Museus e Turismo. Que experiências – Breve reflexão”.
A relação entre Património e Turismo deve ser considerada estratégica
Rosário Correia Machado | Directora da Rota do Românico
A permanente confusão entre conceitos e áreas, leva muitas das vezes a permanentes interrogações, sendo que, aparentemente é o que neste momento está em causa. O conceito de património apesar de parecer muito vasto, tem em si mesmo um espírito mais amplo, mas claro. Plasmado em várias Carta Internacionais é definido de uma forma geral, ou seja património natural e cultural pertence a todas as pessoas. Cada um de nós tem o direito e a responsabilidade de compreender, apreciar e conservar os seus valores universais. Assim sendo, é de destacar o sentido de pertença, de responsabilidade, de acesso e de universalidade e, aqui entendemos valores, missões e objetivos comuns.
Tendo como base a, ainda atual, Carta Internacional sobre Turismo Cultural, adoptada pelo ICOMOS, em Outubro de 1999, “o turismo continua a estar entre os veículos mais importantes para as trocas culturais, proporcionando uma experiência pessoal, não só sobre aquilo que sobreviveu do passado, mas sobre a vida e a sociedade contemporânea dos outros. É crescentemente apreciado como sendo uma força positiva para a conservação natural e cultural. O turismo pode capturar as características económicas do património e dedicá-las à conservação, gerando fundos, educando a comunidade e influenciando a política. É uma parte essencial de muitas economias nacionais e regionais, e pode ser um importante fator no desenvolvimento, quando gerido com sucesso.”
Assim sendo, é para mim indiscutível, que património e turismo devem assumir uma forte interação. A relação entre património e turismo deve ser considerada estratégica, contudo é necessário a devida atenção aos respetivos valores de conflito, e que este deve ser gerido de forma sustentada. Ao abordarmos uma estratégia planeada, acautelamos desde logo aspetos fundamentais, ou seja, devemos desde logo ter em conta que o turismo, no seu papel instrumental, deve potenciar o património, permitindo, para ambos os lados, uma relação estrutural, mesmo que pontual. É importante, por exemplo, acautelar que a informação turística sobre património seja de elevada qualidade para que a compreensão do bem pelo visitante não seja defraudada, não só pelo carater significativo do património mas, fundamentalmente, sobre a necessidade da sua proteção.
O maior risco nesta fundamental relação de princípios é a reação reativa, pois esta, dificilmente, assenta num compromisso sólido e estratégico.