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A liberalização da gestão patrimonial


Para aqueles que estão mais afastados do tema do património cultural (monumentos, museus e palácios), importa saberem que, até à data de hoje, em Portugal, a gestão deste bem é um monopólio estatal operacionalizado por instituições do poder central ou então de nível municipal. Existe ainda uma curta parcela de bens que é gerida por entidades de natureza privada, praticamente todas elas com o carácter de fundação sem fins lucrativos.

Esta opção continuada no tempo tem os seus resultados bem à vista de todos: a percepção comum que o estado de conservação dos edifícios com carga patrimonial é de eminente ruína ou, pelo menos, de acentuado abandono; a generalidade da população portuguesa sem hábitos instituídos de visita a museus ou monumentos; uma matéria “patrimonial” que circula num ambiente restrito constituído por uma dupla “académicos / dirigentes de instituições”, alternando entre si, ciclicamente, os lugares de decisão. Tudo confluindo naquilo que nem poderemos chamar de “divórcio” – porque tal pressupõe uma relação prévia –, mas mais uma ausência de relação com um bem que é, afinal, uma herança de todos.

De facto, o património cultural é de todos: sendo cidadãos deste país, cada um de nós recebe à nascença um conjunto de bens extraordinários, materialização de uma história rica, diversificada e longa que é a História de Portugal. Todos somos proprietários destes bens.

É nesse sentido que qualquer política patrimonial deve ter como principal foco os cidadãos, o outro, as pessoas: a partilha. E nesse mesmo sentido, sendo um bem comum, deve a sua gestão, operacionalização, disponibilização poder ser levada a cabo por todos aqueles que reúnem as capacidades técnicas necessárias, independentemente de serem organizações de natureza pública ou privada.

Este raciocínio simples, de base profundamente democrática, é uma prática comum em países como Inglaterra, França e mesmo Espanha. Com graus mais ou menos elevados de liberalização, há muito que temas como a bilhética, as lojas de merchandising (fundamentais para a sustentabilidade financeira dos equipamentos), a componente de gestão de espaços para alugar (igualmente fundamental), até mesmo a implementação de sistemas eficientes de visitação guiada e programação de serviços educativos são da responsabilidade de empresas privadas.

Empresas consituídas por capital humano com um elevado grau de formação, jovem, integradas em dinâmicas internacionais e profundamente criativas. Estas empresas apresentam vários benefícios para a gestão do património e para uma maior harmonia do país que são bem fáceis de perceber: sendo empresas, o seu foco é o cliente, ou seja, o outro, as pessoas – a permissa chave da boa gestão patrimonial. Estão preocupadas em chegar ao consumidor – partilhar – e não, como sucede com boa parte da gestão pública instalada, em satisfazer as necessidades da estrutura. Por outro lado, o trabalho em património tem uma vantagem considerável em termos de desenvolvimento harmonioso do país: o facto de não ser amovível, de estar “preso” ao território, às suas especificidades únicas, e desta “singularidade” ser fundamental para a diferenciação do produto – uma oportunidade de criar riqueza, empregabilidade e desenvolvimento sócio-económico local.

Até hoje, grosso modo, apenas os serviços de segurança e de restauração em património cultural são concessionados a privados. Está na hora do Estado reconhecer que não é sua missão criar lojas de merchandising nos monumentos, palácios e museus, promover sistemas de visita guiada eficientes e adaptados às múltiplas disponibilidades de consumo dos clientes / visitantes, desenvolver programas de festas de aniversário e actividades de férias em equipamentos culturais... Estas são acções claramente de natureza comercial e devem ser executadas por empresas. Empresas focadas no cliente, no consumidor, geradoras de mais tráfego nos monumentos, de mais rentabilidade destes bens, de maior satisfação com a experiência tida, de maior fidelização, enfim, daquilo que nestes já quase quarenta anos de democracia ainda não se conseguiu criar: a banalidade da relação do cidadão com o seu património, no sentido de algo perfeitamente integrado no seu dia-a-dia, versus a experiência excêntrica que continua a ser o consumo destes bens pela generalidade da população portuguesa.

Publicado em Vida Económica, 24-1-2014

Catarina Valença Gonçalves

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