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Activação do Património


Já alguma vez visitaram o património que se esconde nas Gares Marítimas de Alcântara e Rocha do Conde de Óbidos? Partilho convosco algumas notas sobre estes dois espaços que serão certamente excelentes desculpas para vos convencer a activar este património, visitando-o!

Na década de 40 estes edifícios acolhiam os passageiros marítimos da capital portuguesa mas bastaram quatro décadas para cair em desuso - devido ao alargamento do Porto e à redução da utilização dos transportes marítimos de passageiros. Hoje são Monumentos de Interesse Público geridos pelo Porto de Lisboa que os aluga para eventos privados, organizando também visitas mediante marcação.

Em 1932, Lisboa era uma cidade cosmopolita sem um local digno para receber os passageiros marítimos. Salvador Sá Nogueira (então administrador do Porto de Lisboa) foi um dos defensores mais eloquentes da construção das gares, lançando reptos ao Engº Duarte Pacheco, então Ministro das Obras Públicas e Comunicações.

Tríptico Nau Catrineta. Patrícia Valinho. 2013

Após alguns entraves do foro orçamental, Salazar deu luz verde para a construção destas gares marítimas: era óbvia a necessidade de modernizar o Porto de Lisboa para receber os navios internacionais de passageiros e projectar a imagem de um país evoluído.

A primeira gare a ser inaugurada foi a de Alcântara que em 17 de Julho de 1943 recebe o navio Serpa Pinto com 253 passageiros de Filadélfia. A Gare da Rocha do Conde de Óbidos inaugurou a 19 de Junho de 1948, dia em que atracou na capital o navio luso-panamiano North King.

O projecto de arquitectura é assinado por Pardal Monteiro, um dos mentores da arquitectura modernista em Portugal com um currículo invejável. À data desta encomenda (1934), Porfírio Pardal Monteiro detinha já três Prémios Valmor e edifícios de peso como a Estação Ferroviária do Cais do Sodré, o Instituto Superior Técnico, a Igreja de Nossa Senhora de Fátima e o edifício do Instituto Nacional de Estatística.

Detalhe do Tríptico "Quem não viu Lisboa Não Viu Coisa Boa", Varinas dividindo peixe. Patrícia Valinho. 2013

O projecto arquitectónico original incluía inúmeros pormenores que não se chegaram a concretizar, como por exemplo uma galeria à altura do último andar com uma largura de 11m e comprimento de 1km para ligar as duas gares. Já para a decoração das salas de espera dos dois edifícios (situadas no último piso das gares), sempre esteve previsto o convite a José de Almada Negreiros, com quem o arquitecto tinha colaborado nos vitrais da Igreja de Nossa Senhora de Fátima.

Estes painéis perpetuaram o talento deste grande homem das artes e são incríveis exemplares da arte contemporânea portuguesa, executados segundo a técnica de pintura mural a fresco, e que lançaram Almada Negreiros num dos pontos mais altos da sua carreira.

Dispensando apresentações, Almada é um dos responsáveis pelo modernismo e futurismo em Portugal. A sua arte dividiu-se entre as artes plásticas (desenhador, pintor, figurinista) e a escrita (romancista, poeta, ensaísta e dramaturgo). Viveu em Paris, onde chegou a ser bailarino de cabaret, e em Madrid. Morreu com 77 anos de idade em 1970, no Hospital de S. Luís dos Franceses (Bairro Alto, Lisboa), no mesmo quarto que Fernando Pessoa.

Tríptico sobre as partidas. Patrícia Valinho. 2013

Os catorze painéis frescos que decoram as paredes destas Gares Marítimas foram executados entre 1943 e 1949. São obras representativas da dualidade artística de Almada entre a pintura e a ilustração, mas também entre as artes plásticas e a escrita: a teatralidade (o exagero das poses e expressões das figuras representadas) e a narrativa (referências a obras anteriores do artista). O próprio Almada admitiu “creio não haver antes cumprido melhor nem feito obra que fosse mais minha” (Diário de Lisboa, 1953).

Os oito painéis da Gare de Alcântara (dois trípticos e duas composições independentes) valheram-lhe a quantia de 200.000$00. Retratam bem a sociedade portuguesa da época: por um lado, o tríptico da Nau Catrineta que é inspirado na época dos descobrimentos e na ideologia do Estado Novo “Deus, Pátria e Família”. Por outro, um retrato da cidade do estuário do Tejo, pescadora e marinheira com as suas varinas e traineiras. As composições isoladas referem a lenda de D. Fuas Roupinho, Primeiro Almirante da Esquadra do Tejo, e a ruralidade portuguesa.

Na Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos o estilo de Almada muda radicalmente. Se em Alcântara foi mais conservador, aqui é moderno, cubista. Esta segunda obra, encomendada pelo valor de 450.000$00 é composta por dois trípticos. Retratam o dia-a-dia da cidade de Lisboa à beira-rio. Uma das composições reflecte a emigração da época, destacando as partidas/chegadas dos emigrantes; a outra reflecte a vida no cais, retratando tipos específicos de lisboetas como os equilibristas, trapezistas, peixeiras e os pescadores.

Detalhe Tríptico sobre a vida no cais, Varinas e Pescadores.

Patrícia Valinho. 2013

Espero ter-vos aguçado a vontade para visitar estes espaços. Deixei de lado todos os detalhes magníficos dos painéis e dos edifícios. De propósito. Merecem ser visitados amiúde. Guardam pormenores únicos do nosso património artístico e imaterial, sendo testemunhas de muitas histórias narrativas: despedidas, chegadas, fugas, segredos...

Almada Negreiros entrevistado por Manuel Varela (1968)

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