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Descentralização e regionalização: será pedir muito, se pedirmos transparência?


Em recente sessão de informação, mais do que de debate, promovida no Centro Nacional de Cultura pelo Forum do Património Cultural, com o apoio do ICOM Portugal, pudemos ouvir o que todos os grupos parlamentares (mais o partido Os Verdes) representados na Assembleia da República pensam acerca da perspectiva da transferência de competências em matéria de Património Cultural e Museus para os níveis regional e local.

Feito telegraficamente o balanço daquilo que ouvimos, ressaltam no nosso entendimento duas conclusões:



a) Todos têm dúvidas, sendo umas mais de fundo outras mais de forma;


b) Existem nos projectos de diplomas legais que começaram a circular, e concretamente naquele que já deu entrada na Assembleia da República e ali iniciou o processo de análise, referente à chama descentralização para as autarquias, formulações classificadas como ambíguas, para os que dão o benefício de dúvida ao legislador, justificando-o no seu desconhecimento, ou opacas, qualificadas como capciosas para os que entendem que o legislador soube bem o que queria, ou seja, foi intencionalmente tortuoso na forma como escondeu as suas intenções, deixando campo para que elas possam a seu tempo ser plenamente concretizadas.



Confesso que, pelo meu lado, saí daquela sessão em posição algo curiosa: as dúvidas que tenho relativamente à reforma que se pretende executar são mais de forma do que de substância; mas quis-me parecer que existe uma clara intenção de opacidade. Estando eu nesta situação, mais me sinto no dever que reclamar por transparência em todo este processo – e bem assim por ponderação atenta do que está para vir, a qual não vejo bem como pode ser compatível com a ausência de discussão pública e, mesmo em sede parlamentar, com uma apreciação verdadeiramente a mata-cavalos.



Quanto às questões de fundo, melhor, quanto a grande questão de fundo, o problema está em saber se entendemos, ou não, que funções de gestão corrente de museus, monumentos e sítios arqueológicos, podem com vantagem, ser transferidas do Estado central, o Governo, para escalões do Estado mais próximos das realidades concretas. Eu penso que sim. Mas com dois grandes limites, a saber:



a) Gestão corrente apenas; não regimes de propriedade e normativos de enquadramento, nomeadamente em matéria de conservação e restauro e limites quanto a usos e acesso público;


b) Exclusão de bens que sejam considerados identitários do todo nacional e por consequência devam permanecer, mesmo ao nível da gestão corrente, no âmbito da esfera central do Estado.



Talvez a região do nosso país em que melhor pode ser entendido o que acabo de dizer é aquela em melhor se expressa o sentimento cívico regionalizador – e talvez também aqui, como quanto à regionalização política propriamente dita, possa ela constituir um bom exemplo, quiçá um caso experimental, antes de prosseguir para o todo nacional.



Ora, acontece que por coincidência, já depois da sessão informativa acima referida pude participar, em Loulé, nas 1as. Jornadas da Rede de Museus do Algarve e pude aí confrontar as ideias que já tinha com as de outros colegas com responsabilidades diversas em autarquias e na Direcção Regional de Cultural (DRC). Para meu relativo espanto houve grande consenso em considerar que a maior regionalização e municipalização da tutela de monumentos e sítios arqueológicos (no Algarve não existem museus tutelados pelos serviços centrais do Governo) é uma boa, mesmo excelente medida. Mas que deve ela ter limites como os que acima indiquei. Em concreto: pode admitir-se sem grande dificuldade que sítios arqueológicos como Milreu ou Alcalar passem para a esfera das autarquias, sempre em relação com museus de retaguarda, os respectivos museus municipais. Mas considera-se que um local como a Fortaleza de Sagres, pela sua carga identitária nacional e mesmo internacional, deve continuar a ser gerido pela DRC ou por organismo em que a mesma se venha a integrar, no caso a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR).




Ruínas de Milreu (Fotografia retirada de: http://www.cm-faro.pt/pt/5825/ruinas-de-milreu.aspx#prettyPhoto[1]/2/).


A questão da “extinção” das DRCs e sua integração nas CCDRs pareceu naquele contexto relativamente pacífica: desde que preservada a identidade do serviço e a autonomia de parecer dos respectivos técnicos, não parece haver grande risco em tal “fusão”, havendo ao invés benefícios potenciais significativos pela maior proximidade entre serviços que, no plano regional, deveriam estar mais articulados entre si: cultura e território, por exemplo.



Claro que a pedra de toque está na garantia da existência de normas regulatórias de âmbito nacional e na existência de um sistema de poderes e contra-poderes que impeçam a sobreposição das mesmas pessoas ou departamentos das funções de autorização e fiscalização. No caso dos monumentos ou sítios arqueológicos de classificação nacional, esse sistema de contra-poderes deverá incluir a capacidade de fiscalização, e sendo caso disso, de embargo, por parte dos serviços centrais do Estado.



Posta a coisa nestes termos ficou em mim algo desdramatizada uma das maiores preocupações com que, confesso, saí da sessão com os senhores deputados. É que foi nela claramente admitido pelo representando do PS, que na circunstância se sentiu na necessidade de defender a iniciativa legislativa do Governo, que certas formulações aparentemente ambíguas, ou desajeitadas, eram de facto intencionais pelo potencial de possíveis desenvolvimentos que podiam depois permitir. O caso mais debatido foi o de “monumentos de âmbito local”, que podem passar para gestão autárquica. Ter-se-ia querido dizer “monumentos de interesse municipal”, figura jurídica já existente na lei? Não, quis-se dizer o que se disse, ou seja, monumentos que independentemente da classificação legal, sejam considerados “de âmbito local”. Seriam no caso algarvio os exemplos de Milreu ou Alcalar, monumentos nacionais que poderiam ser geridos pelas câmaras municipais de Faro e Portimão.



Chegados aqui e não obstante a maior tranquilidade que o exemplo do Algarve me trouxe, não posso deixar de manter grande inquietação quanto à real aplicação deste princípio difuso, para não dizer dissimulado, de repartição dos monumentos nacionais à la carte. Faço-o em primeiro lugar pelas dúvidas que tenho da capacidade de muitas autarquias para gerirem esse tipo de bens. Por limitações técnicas e financeiras, em primeiro lugar. Ao contrário de um museu, que passando do Governo para uma Câmara Municipal, passa com os respectivos técnicos e idealmente como respectivo envelope financeiro, um Castelo, sendo transferido, vai apenas com as muralhas e talvez algum guarda… mas sem nenhuma estrutura técnica que dele cuide, uma vez que esta estava situada ou em serviço de base regional ou em serviço central, mas ambos do Governo.



Acrescem depois as questões de “rentabilização” dos bens transferidos, onde nos diz a vida que será muito mais tentadora a ilusão de ganhos de curto prazo, prescindindo da dignidade própria dos espaços históricos, para os converter em meros recintos de espectáculos. E, directamente relacionado com este aspecto, está o risco de rapidamente “mandar às urtigas” os princípios aceitando que até os mais emblemáticos e identitários monumentos nacionais sejam alienados pelo Estado unitário que somos e entregues às autarquias. Não se trata de mera conjectura, porque sabemos bem do que falamos. Se casos como o do Mosteiro dos Jerónimos estará livre de ser entregue à gestão da Câmara Municipal de Lisboa, pelo menos no horizonte em que podemos antecipar o futuro, já casos como o Paço Ducal e do Museu Alberto Sampaio, duvidamos que não possam vir a ser entregues à Câmara Municipal de Guimarães – no que, aliás, poderão até advir ganhos de curto prazo para ambos.



Porque refiro um museu de grande importância, que bem poderia até ser classificado como nacional, importa abordar o caso específico do tratamento dado aos museus na iniciativa legislativa que já baixou à Assembleia da República. Diz-se nela que “os museus não nacionais” passam a ser tutelados pelas autarquias. E mais uma vez se pensou, algo candidamente, que seria um mero lapso de formulação jurídica, tendo na referida sessão informativa com deputados sido alvitrado que se corrigisse para “museus de tutela nacional”. Mas não: é intencional e visa precisamente poder transferir para as autarquias qualquer museu dependente do Governo, desde que não classificado como “museu nacional”. Ou seja, o conceito técnico e restrito de “museu nacional” é pura e simplesmente mandado para o caixote do lixo, convertendo-se Portugal num país de opereta nesta matéria. No que tem como consequência, como sempre acontece e decorre da sociologia do funcionalismo público, que começou já a corrida à reclassificação de museus, que à força se obrigam a ser nacionais, sendo o caso mais chocante o do Museu Monográfico de Conimbriga, que embora mantendo aquele nome (uma espécie de marca identitária) é agora administrativamente qualificado como museu nacional. Dito de outra forma: museus nacionais passarão a ser todos os que dependam do Governo. Ponto final.



Na sessão a que temos vindo a fazer referência o senhor deputado do PS foi especialmente enfático em afirmar que as CCDRs são organismos do Governo, não havendo portanto lugar a falar em regionalização, mas apenas descentralização. Para muitos, incluindo nós próprios (que somos regionalistas), sendo nisto acompanhados pelo senhor deputado do CDS, que é anti-regionalista (mas demonstrou ser ali um dos melhor preparados para discutir estas matérias), trata-se de um subterfúgio que prejudica bastante a arquitectura administrativa total, enviesando-a demasiado no sentido autárquico. Em todo caso, se as CCDRs, integrando já as “extintas” DRCs, continuam a ser organismos do Governo, veremos adiante quantos mais museus por elas tutelados, depois do de Évora, passarão a reclamar o estatuto de “museus nacionais” – o qual aliás podem até merecer nalguns casos (sendo o Museu Alberto Sampaio um deles), embora noutros, a maioria, o que deveriam é ser classificados como Museus Regionais, sendo tutelados por organismos de âmbito regional, CCDRs ou Regiões, se estas vierem a existir.



O que de todo se deve evitar é a lamentável regressão que já teve início na região Centro, com a passagem de museus de âmbito regional (Aveiro, castelo Branco, Guarda) para as autarquias, nalguns casos com danos porventura irreparáveis na própria conservação unitária dos acervos (caso da Guarda). De lamentável esta evolução pode vir a ser catastrófica em casos como do Museu Abade Baçal, quando as tensões existentes entre autarquias e regiões que até agora se vêm representadas no museu passarem a reclamar as respectivas colecções e as forças centrífugas se impuserem. Ficará então definitivamente sepultados o nobre ideal republicano da criação de Museus Regionais em todo o País.

Capa: Museu de Alberto Sampaio (Fotografia retirada de: http://www.culturanorte.pt/pt/patrimonio/museu-de-alberto-sampaio/#).

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