O desmonte premeditado do património com estima pública (parte I)
No presente momento de crise económica mas também cultural e a propósito de edifícios com estima pública, classificados e ou em vias de classificação, registamos se não mesmo confirmamos o surgimento de condições, de “oportunidade”, para o seu desaparecimento.
A partir de uma imensa fileira de casos “expectantes”, acumulados ao longo de anos que o abandono premeditado, com saque consentido pela imobilidade, pela indiferença da sociedade em geral, pelo cansaço em particular de todos quanto lutaram décadas a fio pela sua preservação, encontram-se agora no seu último estágio de existência.
O tempo em que vivemos leva-nos a pressentir que para a maioria dos casos que se integrarão nesta descrição terão sucumbido, ou irão brevemente sucumbir, perante os que oportunisticamente esperaram pelo contra ciclo económico para justificarem a sua indisponibilidade para encontrar soluções que não passem pela descaracterização, pela demolição. Por vezes, muitas vezes uns tantos “cidadãos”, vêm este momento enquanto “motor” de uma certa economia subterrânea próspera, alimentada por pareceres de entidades que voluntária e involuntariamente passam verdadeiras certidões de óbito ao abrigo das novas leis, desculpando-se com a segurança e/ou outras razões correlacionadas, a par da modernização a todo o custo, da indiferença dos cidadãos perante esta argumentação, com a justificação da necessidade de imprimir um “novo progresso”. Ao invés, também o outro progresso a que todos temos direito, terá ficado penalizado por condicionalismos culturais abstratos e muitas vezes injustos, no legítimo sentir de tantos cidadãos que, perante os vizinhos a quem se permitiram verdadeiras atrocidades, mas por se encontrarem localizados na fronteira de uma qualquer Z.E.P. tudo lhes foi permitido.
Igreja de S. Paulo de Elvas (imagem retirada de http://salvemosaigrejadespaulo.blogspot.pt/2010/07/igreja-de-s.html)
São constantes os casos de desaparecimento de património que já nem o sarcasmo que podemos destilar, nem a perplexidade pelo espanto da ousadia negativa destes, como de outros tantos casos paradigmáticos que não surgem nos jornais, parece já não incomodar ninguém. A indignação terá sido vencida pela resignação geral da sociedade e principalmente por quem compete zelar pelo património nacional, que na verdade, já ninguém sabe quem é. Sobretudo chegarmos de forma célere a uma abdicação do Estado ou das entidades que devem de forma explícita responder perante actos de lesa cultura. Porque se chega a tanto desprezo, pela “coisa pública”, pela herança cultural, pelo bem comum? Ou tão simplesmente se é indiferente? Com o desaparecimento injustificado da D.G.E.M.N e do IPPAR, ficou um vazio, para centenas de imóveis classificados e de outros tantos com estima pública que beneficiavam da protecção de acompanhamento das referidas Z.E.P’s ou porque simplesmente existia na sociedade civil quem se interessasse pela sua conservação, incluindo as autarquias.
As actuais entidades que aparentemente deveriam substituir a D.G.E.M.N. e o IPPAR, precipitadas e inadvertidamente extintas, são disfuncionais entre si e inoperantes pelo escasso corpo técnico e certamente por outras razões estratégicas de emagrecimento dos seus orçamentos e consequentemente de responsabilidade. Se o objectivo era retirar do caminho dos pareceres as entidades que analisavam procedimentos, projetos e intervenções que sem critérios culturais e de interesse colectivo, se propunham actuar sobre edifícios de valor público notório, exteriores ou integrados nos centros históricos ou mesmo em edifícios classificados, “forçavam” a sua aprovação, terão porventura actualmente atingido esse objectivo. Parecerá assim que se vai diariamente construindo o vazio, sem sentido de herança de legado para o futuro que deveria ter sido reajustado às novas realidades, mesmo na inequívoca substituição de instituições que assegurem o devido enquadramento cultural, ou mesmo no indispensável reajustamento legislativo. Recordamos um caso que quando surgiu, em 2010, prenunciava a mudança de ciclo de toda a sociedade em declínio, reportamo-nos à Igreja de S. Paulo de Elvas. Um caso específico que de onde menos se esperava, veio confirmar este tempo desarticulado em que vivemos.
Demolição da Igreja de S. Paulo de Elvas (imagem retirada de http://blocoesquerdaelvas.blogspot.pt/2010/07/cme-e-caso-igreja-de-s-paulo-sopas.html)
Sabendo nós que se a maioria do valioso património militar se encontra razoavelmente cuidado se deve a essa indispensável instituição nacional, estranhámos na altura a atitude imponderada dos seus representantes, até porque se espera deles a salvaguarda da “memória material e imaterial”, do território nacional que é também o da cultura, da identidade portuguesa como um todo e que tão diligentemente têm preservado ao longo de séculos.
Sabemos que um momento menos feliz não apagará a longa e generosa tradição de bem-fazer desta incontornável instituição do estado português, contudo este “deslize”, constitui um sério aviso do que ainda poderia e ainda poderá, vir a surgir. Respectivamente a alienação de vasto património arquitectónico público como escolas, hospitais, quartéis, casas de função, bairros de grandes empresas como os da C.P., da Quimigal, da EDP, etc. localizados em valiosas áreas urbanas e/ou valor paisagístico expectantes, um pouco por todo o país. Contudo, e voltando à instituição militar, julgamos permanecerem nela valores éticos incorruptíveis que sendo referenciais, não são inalienáveis perante a sociedade, pugnando por não se deixar corromper pela via da especulação, da soberba cega do lucro milionário, do decadente e inoperativo negócio imobiliário. A sociedade financeira que acolhemos como boa, descredibilizou-se por via de comportamentos censuráveis, que subterraneamente continuam o seu silencioso trabalho de desmonte parcial, mas cirúrgico do património arquitectónico, da nossa moldura cultural diferenciadora e simultaneamente integradora de um universalismo civilizador.
(parte II a publicar no dia 26 de Fevereiro)