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100%


Os nossos dias estão a ganhar um estranho sabor a cicuta. É penoso passar os olhos pelos jornais. E suspeito que muitos de nós ganhámos já o hábito de evitar religiosamente o ciclo diário da narrativa noticiosa, com os seus cenários dantescos, invocados por cisnes negros e feitos de cortes sem fim.

Por mim, acabo por me centrar cada vez mais no universo das batalhas que conheço. Mas nada me podia ter preparado para a notícia de um corte de 100% no orçamento da cultura de uma cidade como Newcastle.

Já em 2011, quando o actual governo britânico engrenou na sua ‘grande marcha’ rumo ao luminoso equilíbrio orçamental, confesso que fiquei chocada e triste com o despedimento, a reforma compulsiva e a extinção quase sumária de uma boa parte do programa Renaissance. Um trabalho de fundo, feito por excelentes profissionais, estruturante e exemplar, foi subitamente varrido pela política dos números e das estatísticas.

"Showboat", Newcastle Gateshead Bridges Festival

Agora, de Inglaterra, chegam notícias de que em Newcastle se discute seriamente a extinção da totalidade do financiamento ao sector cultural, fechando pelo menos dez bibliotecas e metade dos Museus da cidade. Porque, dizem-nos, o estado social está falido, porque em breve não haverá dinheiro para pagar a luz, para pagar o pão, para pagar a paz.

Aparentemente, no início da segunda década de século XXI, a cultura ainda não mereceu um lugar por entre as missões do estado social. Porque razão iria este financiar a arte e a cultura? Construir bibliotecas e proteger colecções? Não será mais fácil deixar ruir, perder, esquecer?

Em Portugal, na nossa casa comum, há muito que começámos a esquecer. Temos uma grande experiência destes frequentes lapsos de memória. E é difícil, cada vez mais difícil este combate. Mas é a imensa fragilidade do nosso património – nas suas mais variadas formas – que devemos proteger. É a imensa fragilidade da educação das nossas crianças. A imensa fragilidade do futuro.

Life Interactive World, Newcastle upon Tyne

Na área dos museus e do património, a batalha ganha ainda outra dimensão porque é travada, todos os dias, com os olhos postos na linha do horizonte, pensando na construção de um público futuro - que ainda não o é. Nesta área de trabalho, medidas draconianas podem representar uma perda irreparável para a sociedade, porque criam o vácuo onde se abre espaço - tal como já aconteceu num outro tempo - ao revisionismo histórico, à subversão da própria democracia, da liberdade de expressão, da igualdade de oportunidades.

Estamos muito longe dos dias do ‘fim da história’. A democracia está hoje longe de ser o último regime possível. A possibilidade de um estado social falido reserva-nos por certo muitas surpresas desagradáveis. E em Portugal, as surpresas parecem estar já ao virar da esquina.

Sempre que dou comigo a pensar na enorme impreparação com que a actual geração política assumiu os destinos do nosso país, sinto uma náusea de vertigem - porque é da minha geração que estou a falar.

Great North Museum gallery, Hancock Museum

De uma geração que ganhou o hábito de fazer equivaler participação política ao cartão de uma ‘jota’. De uma geração para a qual fazer política passou a equivaler a uma carreira. De uma geração que encontra nos números uma falsa confiança, que circula numa espécie de universo paralelo, autofágico, em que a representação da realidade se torna mais real que a própria realidade.

A esta geração, seja ela de direita ou de esquerda, parece ser suficiente o receituário económico. Mas se o diagnóstico da crise é o do “capital pelo capital”, corremos agora o risco de ser vítimas de uma terapia da “política pela política”. E por entre os números, perdem-se de vista as pessoas.

Library, The Literary and Philosophical Society

Of Newcastle upon Tyne

A educação, a saúde, a cultura, são feitas por pessoas para pessoas, que neste momento, se perdem na “refundação do estado social”, no anonimato das reformas, do texto da legislação, dos processos administrativos, num mundo em que a qualidade dos projectos, o seu impacto social, os recursos investidos até à data são absolutamente indiferentes à retórica política. E perdem-se no turbilhão da administração pública os seus melhores profissionais - não para o desemprego ou para a extinção, mas para a descrença, para a desmotivação, para o silêncio.

No entanto, ainda encontramos bolsas de oxigénio em pequenas equipas com uma liderança lúcida, que acreditam no serviço público. Que têm a coragem de assumir que os cortes devem ser selectivos e que podemos até reforçar o investimento num projecto com impacto, relevante. Que ensaiam novos modelos de organização administrativa. Gente com capacidade de trabalho, com vontade do trabalhar para o público e com um enorme prazer de inovar na administração pública e nas pequenas empresas privadas. Gente que constrói, com a sua actividade diária, um espaço de liberdade em que o capital é para as pessoas, em que a gestão tem uma cara e uma consciência.

Hancock Museum, Newcastle upon Tyne

Em Newcastle, há quem pense em cortar a direito. Mas as comunidades em que vivemos são tecidos frágeis. E a verdade é que é muito mais difícil fazer algo renascer das cinzas do que criar algo de novo. As lições do terceiro sector mostram-nos que um dos grandes dramas dos técnicos de acção social é a reconquista das populações por entre as cíclicas interrupções e mudanças em programas de intervenção social. Porque não se perde apenas o talento e o trabalho das pessoas envolvidas, perde-se também a esperança, o investimento pessoal, a vontade de acreditar e de mudar.

Mas se os cisnes negros no nosso horizonte nos recordam que nada é inatacável, também nos lembram a razão pela qual a nossa democracia, a nossa qualidade de vida no sentido mais abrangente, tem que ser defendida. Porque nós que trabalhamos com o património e a cultura, sabemos que as melhores coisas da vida não são as coisas.

Nesta crise, vamos ter de nos agarrar à esperança. Vamos ter que abandonar a visão simplista que nos divide entre esquerda e direita, estado e sociedade civil, sector público e sector privado. Vamos ter que recusar, na mesma medida, o estado sem rosto e o capital anónimo. Vamos ter de olhar de frente o espectro do desconhecido, perder o medo paralisante, e reaprender a sonhar.

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