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Interesse Público e Actividades Comerciais em Monumentos e Museus


Em editorial intitulado “Novo SEC, novo OE: o Património no Estado - parte II: políticas”, publicado no site Património.PT (http://www.patrimonio.pt/), aborda Catarina Valença Gonçalves uma questão importante e muito actual em matéria de políticas do património cultural, a saber: a necessidade de definição de “serviço publico”, distinguindo este de “actividades comerciais” que possam ter lugar em monumentos e museus. Trata-se, como digo, de questão relevante e actual e dela me ocupei em intervenção que realizei em Maio passado na sessão organizada pelo ICOM Portugal no Museu Nacional de Arqueologia, durante a 9ª Conferência do EMAC (European Museums Advisors), subordinada ao tema “Commercial entrepreneurism, philantropy and government subsidy in museums”, tendo como orador principal o Dr. Michael Dixon, Presidente da Conselho dos Directores dos Museus Nacionais do Reino Unido e Director do Museu Nacional de História Natural, de Londres.

Partilho com a editorialista a análise que faz quanto ao incremento do chamado “mercado do património”, seja na vertente da oferta proporcionada pelos detentores do mesmo, especialmente o Estado (o mesmo não se pode dizer, infelizmente, do outro grande detentor de património cultural público, a Igreja), seja quanto à resposta dada pelos sectores não estatais da economia, de tipo cooperativo, associativo ou privado. O maior envolvimento destes sectores na execução das políticas públicas de património, bem como a sua crescente e notável qualificação, faz parte do nosso desenvolvimento enquanto comunidade nacional e deve ser efusivamente saudado. Dito isto, importa-me sobretudo sublinhar as distâncias que pressinto existirem entre as ideias expressas pela editorialista e as que eu defendo. Constituem diferenças de natureza doutrinária, decorrentes do entendimento que dermos a conceitos como os de “serviço público” ou até “museu”, e resultarão talvez também, muito naturalmente, de diferentes posturas político-ideológicas (contrariamente ao que se vai fazendo crer, as ideologias não morreram e não existe ideologia mais radical do que a que pretende que “o mercado” e a sua lógica tornaram obsoletas a política e as ideologias). A ideia de fundo que perpassa a demanda da editorialista e acima resumi, a de que é possível e desejável estabelecer uma fronteira entre “serviço público” a “actividades comerciais” em museus e monumentos, cabendo ao Estado o primeiro e aos agentes privados as segundas, afigura-se especialmente frágil e perigosa. A fragilidade pode decorrer de mera ingenuidade. Mas o perigo envolve necessariamente interesses mais ou menos explícitos ou mais ou menos ocultos de agentes que se pretendem posicionar neste sector não propriamente para “estar ao serviço do património”, mas para com ele poderem realizar receita destinada a apropriação privada – o que obviamente é totalmente legítimo (seja sob a forma de recursos dirigidos ao pagamento de trabalho, seja sob a forma de riqueza destinada a distribuição accionista, aquilo a que vulgarmente chama lucro) e não deve ser objecto de juízo moralista, mas importa explicitar para que não sejamos levados a “comer gato por lebre”. Admito, falando especificamente de museus públicos, por maior facilidade argumentativa, que haja “actividades comerciais” aí realizadas e que as mesmas escapem ao conceito de “serviço público”. Admito e frequentemente (não sempre, entenda-se) considero-o lamentável. Quando um museu público se rende à cultura dos “eventos” (curiosa palavra esta que hoje todos usam no sentido anglo-saxónico, em desrespeito do sentido preciso que deveria ter numa língua neo-latina como a nossa), pode bem ser que deixe de cumprir “serviço público” e possa por isso ser assimilável a mero agente do mercado do entertainment. Mas, em tais circunstâncias, a verdade é que o museu público deixa não apenas de prestar “serviço público” como na verdade deixa de ser “museu”. Atentemos na definição de “museu” estabelecida pelo ICOM a adoptada em todo o Mundo: “O museu é uma instituição permanente sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o património material e imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite.” Ou seja, em primeiro lugar o museu tem necessariamente de centrar a sua acção na melhor fruição social do seu acervo, que “conserva, investiga, comunica” (na Lei-Quadro dos Museus Portugueses estabelece-se até, e não por acaso, uma outra ordem na apresentação das chamadas “funções museológicas”, colocando em primeiro lugar a da investigação). Claro que uma boa gestão de um museu pode tirar partido das infra-estruturas existentes (centralidade geográfica, amplitude dos espaços… o próprio prestígio da “marca” museu, etc) para a realização de acções, actividades ou acontecimentos (outros dirão “eventos”) totalmente alheios à sua missão específica. Dentro de limites, é certo. Acima de todos os que sejam impostos pela preservação da “marca” museu e a natureza própria de cada museu em particular. Por muito dinheiro que possa gerar dificilmente se vê como um certame destinado a ensinar as práticas da pirataria informática, por exemplo, possa ter lugar em museu nacional detentor de acervos simbólicos de um País. Já um concerto musical, ao invés, poderá muito bem ter lugar em espaço exterior, no perímetro de um museu. Nós próprios o promovemos no Museu Nacional de Arqueologia. Mas ainda neste caso, importa estabelecer limites. Pela minha experiência, diria que uma coisa é um concerto de música de raiz étnica (popular ou erudita), num espaço museológico intrinsecamente etnológico ou etno-arqueológico; outra coisa seria a realização de um concerto rock no mesmo local. Por outro lado, uma coisa é a promoção excepcional pelo museu, em momento de festa, de uma actividade musical sem directa vinculação aos acervos (actividades do Dia Internacional dos Museus, por exemplo); outra coisa será a programação consistente ao longo do ano, e em anos sucessivos, de actividades desse cariz. Nestes casos, o museu actua como mero agente do mercado da oferta de espaços para a realização de actividades de entertainment, sendo discutível que o faça e, fazendo-o, devendo ser considerado como mero parceiro de uma cadeia comercial, na mesma condição em que uma autarquia aluga um pavilhão desportivo ou um ministério arrenda um auditório, ambos para fins estranhos à sua inerente função. Nestas situações, o museu recebe naturalmente a receita que contratualmente lhe caiba, a título da cedência de instalações e outros recursos de suporte, a qual investirá por inteiro na sua actividade principal. Apenas em casos como os indicados podem as actividades realizadas em museus ser consideradas como “comerciais”. Em tudo o resto, que desejavelmente constituirá a esmagadora maioria da vida corrente das instituições, as actividades dos museus não são “comerciais”, porque não visam, nem podem visar, o lucro e porque servem as funções museológicas e constituem, por consequência, “serviço público”. Assim é quanto à conservação e restauro dos acervos, quanto aos programas educativos ou até quanto às lojas, ou seja, quanto a quase todos os exemplos apresentados pela editorialista. Exceptuar-se-ão porventura os casos de festas de aniversário ou outras actividades idênticas, se destas estiver ausente qualquer relação com o acervo do museu locatário (o que normalmente não é o caso), condição em que se aplicaria o que ficou dito no parágrafo anterior. Claro que muitas destas actividades de “serviço público” poderão, e provavelmente deverão, ser realizadas em parceria com entidades privadas, sejam elas empresas, associações ou cooperativas. Penso hoje até, com provável reprovação dos meus colegas conservadores (profissional e socialmente falando), que não existe na actividade dos museus nenhum “núcleo duro” insusceptível de ser executado em outsourcing ou em parceria com privados. Nenhum mesmo, nem sequer a gestão dos acervos. Isto, está claro, desde que entendamos esta relação não apenas no plano das tradicionais formas de adjudicação, mas, o que é bem mais interessante e começa já a ser praticado, como estratégias de convergência, centradas no museu, mas visando obviamente a prossecução de finalidades comuns. Não nos iludamos, porém: na maior parte dos casos estes modelos de parceria resultarão em gastos para o erário público maiores do que se os mesmos serviços fossem prestados através de recursos internos das instituições. Importa sublinhar que eu sou dos que entendem que este aumento de custos pode justificar-se, caso se traduza em acréscimos de operacionalidade e de qualidade no serviço público. Mas não deixa de ser um aumento de custos. Os “cantos de sereia” que pretendem o contrário, são os mesmos que conduziram o País ao “buraco” das PPPs. Dir-se-á que existem ainda pelo menos duas vias alternativas e mais radicais: a do envolvimento dos privados, através de capitais próprios, em actividades museológicas e patrimoniais em geral. E a privatização pura simples da gestão, senão da propriedade de museus e monumentos públicos. Encontram-se no primeiro caso exemplos como os da concessão a privados de lojas ou equipamentos de restauração. Dentro dos limites impostos no Plano Estratégico (definição da missão e dos objectivos sociais) de cada museu (que terá de ser forçosamente definido, aliás como determina a Lei-Quadro dos Museus Portugueses e a credenciação que decorre da mesma e da legislação e regulamentação ordinária relativa à Rede Portuguesa de Museus), por um lado, e dos termos negociais plasmados em cadernos de encargos competentes e feitos por quem realmente tenha por único objectivo a defesa do interesse público, por outro lado, não tenho nada a objectar a tais opções. Quase o mesmo diria quanto à entrega a privados da gestão (nunca da propriedade, por motivos elementares de soberania nacional) de património cultural público, nomeadamente do que se conserva em museus. Mas aqui as condições a impor serão muito mais exigentes, a ponto de poderem constituir reservas ditadas por pressupostos político-ideológicos. Vejamo-las. Quererão os privados assumir a gestão de equipamentos (monumentos ou museus) que jamais darão lucro, salvo se forem usados para fins comerciais extremos, incompatíveis com a sua natureza identitária ? Desculpem o exemplo porventura chocante: quererá algum privado tomar conta de uma abadia ou uma fortaleza mal localizada, porventura necessitada de restauros vultuosos, sem especiais atractivos para o turismo de massas, senão para aí localizar “casa de passe” ou clínica de desintoxicação de milionários excêntricos ? É que já nem sequer existe charme para tanto hotel. Mas admitindo que sim, que ainda existe charme, existe seriedade e que os fundos públicos (nacionais ou europeus) a que fatalmente se há-de recorrer não são usados apenas para benefício de proprietários, mediadores, empreendedores ou especuladores imobiliários e se concretiza de facto um projecto economicamente viável, com a vantagem de garantir a conservação do bem público. Estarão os privados disponíveis para os ónus que em meu entender obrigatoriamente lhes terão de ser impostos, como por exemplo o de permitirem o acesso aos espaços que gerem, mesmo aos mais reservados, mediante calendário conhecido e divulgado publicamente ? Algo que é rigorosamente cumprido em países de capitalismo sedimentado, como o Reino Unido, onde o sentido da propriedade privada é maior, mas onde o respeito pelo interesse público é levado mais a sério. Duvido grandemente, porque sei por exemplo o que custa visitar a Flor da Rosa, desde que se converteu em estalagem. Mais importante ainda. Sendo certo que apenas os equipamentos mais facilmente rentáveis do ponto de vista financeiro serão desejados pelos privados, a pergunta que resta é a de saber se pode o Estado, em defesa dos contribuintes (nem sequer me refiro aqui aos cidadãos, que todavia constituem os principais protagonistas de todo este enredo), demitir-se de ser ele próprio a obter tais proveitos ? E fazendo-o, ou seja aceitando descapitalizar-se lá onde poderia gerar ganhos líquidos, que consequências envolverá tal opção, nos prejuízos que forçosamente o mesmo Estado terá com os restantes bens patrimoniais à sua guarda, aqueles que nenhum privado quer e seguramente constituem a maioria ? Dito de forma mais directa: pode o Estado prosseguir uma política nacional de património cultural e de museus, mantendo em sua pose apenas os bens que apenas geram “despesa”(entre aspas, porque se dá aqui precariamente por adquirido que os ganhos de cidadania, afinal os mais relevantes, não constituem “receita”). Não será isso o que se esta a passar com a afectação à Empresa “Parques de Sintra – Monte da Lua” da gestão de dois palácios nacionais, um deles, o de Sintra, tido por ser uma “galinha dos ovos de ouro” (cerca de 1 milhão de euros líquidos anuais de receita) e o outro, o de Queluz, deficitário, mas em quantia (300 mil euros anuais, segundo me dizem) e em termos tais que facilmente se antecipa a inversão da situação, desde que feitos os investimentos adequados (com verbas que assim o próprio Estado coloca à disposição da entidade empresarial a que foi adjudicada a gestão) ? Dir-se-á que o Estado, incompetente e paquidérmico, não se mostrou ele próprio incapaz de melhor gestão. Talvez, mas o que importaria seria saber porquê, para o corrigir. Dir-se-á ainda que no caso vertente se trata de entidade empresarial de capitais exclusivamente públicos (uma PPP original, uma “parceria publico público”). Pois sim. Até ao dia em que for privatizada. Quantas e quantas empresas públicas não o foram já, podendo este passo constituir apenas apeadeiro a caminho desse destino. Poder-se-á finalmente, e com muito mais acerto, dizer que os termos contratuais de cada entrega à gestão privada podem defender muito bem o interesse o público, produzir efeitos limitados no tempo, prever monitorização e calendários de renegociação ou resolução por vontade de qualquer das partes, sem especiais penalizações, e ainda por cima conduzir à recuperação de receita que pode ser posta ao serviço de uma política nacional de património. Desconheço se assim é no caso de Sintra-Queluz e importaria que a nova palavra que enche tantas bocas, accountability, tivesse também aqui sentido prático, ou seja, que fossem divulgados publicamente esses contratos. Mas admitindo que seja assim e que, além do mais, a questão da propriedade tenha ficado blindada, quer dizer reservada ao domínio público, então, não vejo objecções de fundo, quer dizer doutrinárias, para que seja adoptado este tipo e opção gestionária. Como se vê por tudo o que fica dito, a oposição não é apenas entre “serviço público” e “actividades comerciais” que considero fragil e perigosamente fundamentada. É a própria dicotomia entre “big picture” (Estado) e “hands-on” (privados) que considero ingénua ou - o que não será certamente o caso da editorialista – ditada por interesses que mais não visam do que proceder à transferência de bens comuns para a criação de riqueza apropriada por alguns. E foi por ter presente toda esta complexidade que entendi passar ao papel as minhas reflexões. Luís Raposo Presidente da Comissão Nacional Portuguesa do Conselho Internacional dos Museus (ICOM Portugal)

Animação de rua a propósito da exposição “O Ouro Tradicional de Viana do Castelo. Da Pré-História à Actualidade” (2008)

Feira dos Saberes e dos Sabores, no Museu Nacional de Arqueologia (2009)

Apresentação do grupo etnográfico Camponeses do Varatojo (Torres Vedras) durante a Festa dos Museus e a propósito da exposição “Vaso Campaniforme. A Europa do 3.º milénio antes de Cristo”, tendo como um dos sítios arqueológicos principais o Castro do Zambujal, em Torre Vedras (2009)

Actuação de As Tucanas, numa das Festas dos Museus do Museu Nacional de Arqueologia (2010)

Actuação de As Tucanas, numa das Festas dos Museus do Museu Nacional de Arqueologia (2010)

 

Luís Raposo

Arqueólogo do Museu Nacional de Arqueologia (de que foi director entre 1996 e 2012). Professor Convidado do Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Presidente do ICOM Portugal e Membro da Direcção do ICOM Europa. Membro do Conselho Consultivo da Comissão Nacional da UNESCO. Antigo Presidente da Associação Profissional de Arqueólogos.

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